MIRTES (Pequeno conto)
A boca de Floripes mal chegava a escumar maldizendo das mazelas alheias, mas que falava com gosto de todos os mortais à sua volta, isso ela falava.
--- Mirtes mudou muito para casar com esse rapaz, Ninha.
--- Grossa como era, parece milagre!
--- Grossa? Grossa é apelido!... Põe grossa nisso!
--- Mas casamento muda as pessoas... quem sabe?
--- Du-vi-dê-ó-dó!
Irônica, Floripes desdenhava de um final feliz que pudesse constituir o futuro da recém casada.
Mirtes, hoje, é um nome inusual, concordam? Pois Mirtes era o seu nome. E, Mirtes, foi também a sua primeira mulher, e, por pouco, não foi a causadora de ser a última --- até onde eu saiba. Infeliz, do Mauro. Se hoje, no viço de seus 22 anos, à época do casório beirava os 19. É verdade, que naquele tempo deu a ela com certa relutância, mas deu o “sim” às núpcias com aquela idade de sonhos e inexperiência, de insegurança e de curiosidade. Advém, daí, a circunstância plausível a quem culpar: a ingênua mocidade, alheia e incapaz de julgar a dissimulação humana a qual Mirtes tão bem representava. Deu-se o casamento.
Pobre casal! Com ele, se poucos foram os meses a comemorar, muito tempo tiveram para chorá-lo!
Alegrias, realizações concretizadas, esperanças pensadas, os vapores da festa ainda cobriam o novo casal. Para eles, nada viria melhor que um herdeiro a partilhar tal felicidade. Mirtes, porém, não engravidava. Cumpria-se a regra da sabedoria popular, “Deus escrevendo certo por linhas tortas”. Desde o início, aquele que devia ser o primogênito, --- com ansiosos planos dos pais --- a Providência aconselhou-o a não descer a Terra. A misericórdia Divina, através de sua onisciência, negava assim, ao infortúnio, um destino fadado ao sofrimento. “Pra quê? No mundo já não existe dor em demasia?"
As palavras de Floripes, embora levianas, foram também proféticas. A instituição sagrada do casamento tem sido decisiva na condução dos casais, levando-os a transformações pessoais permanentes, obrigando-os legalmente a representarem personalidades diferentes do que eram. Com Mirtes não. Contraditoriamente, meses após o casório abandonou os escrúpulos, assumindo seus ares naturais de solteira descompromissada. Simplesmente, Mirtes voltou a ser quem sempre fora!
Se nos foi dado conhecer a fama malévola de Mirtes, Mauro, ao contrário, dócil e prestativo possuía alma daqueles puros de coração a quem se referem os evangelhos. E a vida transcorria.
Em meio aos desconfortos iniciais provocados pelas negaças da mulher, Mauro cedeu. Obedecia a índole. Omitia-se evitando que a relação sofresse sobressaltos, enquanto Mirtes fortalecia-se. Seguiram-se, pois, os desmandos próprios do seu gênio irascível, subjugando-o de vez no decorrer da convivência.
--- ... Não pode ser assim, Mirtes!
--- Não pode ser é como você quer!
--- Mas...
--- Mas o quê?!
--- Há quantos dias estou assim?
--- Pois que fique mais uns!...
E fechava o diálogo com tal rispidez transparecendo sacudi-lo pelo colarinho. Mauro calava-se humilhado.
Ao que me foi dado presenciar, nos poucos anos em que os freqüentei, não fugia a regra o destempero e a rispidez em seus diálogos.
--- ... Agora tenho que ir rezar! Apossando-se da bolsa saía resoluta sem olhar pra trás.
A socorrer seus apelos de fé, talvez nenhum santo em seu claustro de veneração cultivasse o mesmo fervor demonstrado por Mirtes naquele instante de suas vidas. A cada dia uma missa, um terço, uma novena, entremeados a dois cultos semanais. E para maior desespero do rapaz, pasmava vê-la nos finais de semana submeter-se a uma sessão de descarrego no velho Centro do Pai Joaquim. Tamanhos compromissos arranjados forçavam o jovem marido a levar uma vida de solteiro compromissado, condição que tanto o martirizava forçado pela fidelidade devotada à mulher.
A natureza não reconhece o bom e o mau, o certo e o errado; a natureza prima pelo equilíbrio. De forma que dá, aos famintos, maior poder de sexualidade e procriação, buscando preservar a espécie; em contrapartida, torna a recíproca verdadeira: barriga cheia, libido vazia. Ocorria Mauro sofrer inversamente nas duas pontas da questão: barriga vazia, libido cheia!
Faço-me entender: Mauro poderia até sublimar suas ânsias com as habilidades culinárias da mulher --- coisa que Mirtes, após o casamento, provou não tê-las --- ou, na pior hipótese, quem sabe, contar com a sua boa vontade em descobrir nos alimentos e nos temperos uma fórmula de minorar a relação. Mas não. Dava de ombros a que um homem pudesse ser fisgado pelo estômago.
Como se via, em que pese a paciência do jovem marido, a mulher revelava-se caso perdido. Para ela, levada pelo desinteresse e pela preguiça, a cozinha tornava-se abominável; aos prazeres da cama, a carolice desregrada conseguira transformá-los num sacrilégio!
É contra-senso negar que um carinho, uma transa ocasional ou simplesmente uma palavra de apoio, embora espaçadas e frias, não tenham o condão de relevar atitudes danosas à relação. No caso, amuos prolongados ocorreram, é bem verdade, entrementes, represálias antes planejadas por Mauro iam sendo adiadas à revelia do tempo, evitando o desenlace que se via iminente e traumático. Ao abrir os olhos, Mauro viu passados três anos.
Conhecemo-nos por volta de 1987. Casou-se um ano depois e testemunhei o seu drama matrimonial durante os anos em que permanecemos na mesma cidade. Éramos amigos e funcionários de certo banco. Amante da literatura, vim a conhecer as peripécias de Catarina e Petruquio em “A Megera Domada” de W.Shakespeare, e via um certo paralelo na vida dos dois casais, embora Mauro não tivesse o cinismo e a coragem pessoal de Petruquio para lidar com a mulher. De intenção velada emprestei-lhe o livro. Pouco depois, transferido, mudou-se com Mirtes e lá se foi o empréstimo.
Me contentaria num daqueles dias futuros, --- onde o casal estivesse, --- eu pudesse ver Mirtes domada juntamente as suas atitudes descabidas, declarando: “E quanto mais quis ser, menos fui!” e Mauro, soberano, finalmente ordenando: “E agora, Mirtes, para a cama!*
Recompensaria, pelo menos, a perda do livro.
Expressão final dita por Petruquio, após domar a megera Catarina, ordenando-a que se
dispusesse a cumprir com as suas obrigações conjugais. (E agora, Catarina, para a cama!)
A boca de Floripes mal chegava a escumar maldizendo das mazelas alheias, mas que falava com gosto de todos os mortais à sua volta, isso ela falava.
--- Mirtes mudou muito para casar com esse rapaz, Ninha.
--- Grossa como era, parece milagre!
--- Grossa? Grossa é apelido!... Põe grossa nisso!
--- Mas casamento muda as pessoas... quem sabe?
--- Du-vi-dê-ó-dó!
Irônica, Floripes desdenhava de um final feliz que pudesse constituir o futuro da recém casada.
Mirtes, hoje, é um nome inusual, concordam? Pois Mirtes era o seu nome. E, Mirtes, foi também a sua primeira mulher, e, por pouco, não foi a causadora de ser a última --- até onde eu saiba. Infeliz, do Mauro. Se hoje, no viço de seus 22 anos, à época do casório beirava os 19. É verdade, que naquele tempo deu a ela com certa relutância, mas deu o “sim” às núpcias com aquela idade de sonhos e inexperiência, de insegurança e de curiosidade. Advém, daí, a circunstância plausível a quem culpar: a ingênua mocidade, alheia e incapaz de julgar a dissimulação humana a qual Mirtes tão bem representava. Deu-se o casamento.
Pobre casal! Com ele, se poucos foram os meses a comemorar, muito tempo tiveram para chorá-lo!
Alegrias, realizações concretizadas, esperanças pensadas, os vapores da festa ainda cobriam o novo casal. Para eles, nada viria melhor que um herdeiro a partilhar tal felicidade. Mirtes, porém, não engravidava. Cumpria-se a regra da sabedoria popular, “Deus escrevendo certo por linhas tortas”. Desde o início, aquele que devia ser o primogênito, --- com ansiosos planos dos pais --- a Providência aconselhou-o a não descer a Terra. A misericórdia Divina, através de sua onisciência, negava assim, ao infortúnio, um destino fadado ao sofrimento. “Pra quê? No mundo já não existe dor em demasia?"
As palavras de Floripes, embora levianas, foram também proféticas. A instituição sagrada do casamento tem sido decisiva na condução dos casais, levando-os a transformações pessoais permanentes, obrigando-os legalmente a representarem personalidades diferentes do que eram. Com Mirtes não. Contraditoriamente, meses após o casório abandonou os escrúpulos, assumindo seus ares naturais de solteira descompromissada. Simplesmente, Mirtes voltou a ser quem sempre fora!
Se nos foi dado conhecer a fama malévola de Mirtes, Mauro, ao contrário, dócil e prestativo possuía alma daqueles puros de coração a quem se referem os evangelhos. E a vida transcorria.
Em meio aos desconfortos iniciais provocados pelas negaças da mulher, Mauro cedeu. Obedecia a índole. Omitia-se evitando que a relação sofresse sobressaltos, enquanto Mirtes fortalecia-se. Seguiram-se, pois, os desmandos próprios do seu gênio irascível, subjugando-o de vez no decorrer da convivência.
--- ... Não pode ser assim, Mirtes!
--- Não pode ser é como você quer!
--- Mas...
--- Mas o quê?!
--- Há quantos dias estou assim?
--- Pois que fique mais uns!...
E fechava o diálogo com tal rispidez transparecendo sacudi-lo pelo colarinho. Mauro calava-se humilhado.
Ao que me foi dado presenciar, nos poucos anos em que os freqüentei, não fugia a regra o destempero e a rispidez em seus diálogos.
--- ... Agora tenho que ir rezar! Apossando-se da bolsa saía resoluta sem olhar pra trás.
A socorrer seus apelos de fé, talvez nenhum santo em seu claustro de veneração cultivasse o mesmo fervor demonstrado por Mirtes naquele instante de suas vidas. A cada dia uma missa, um terço, uma novena, entremeados a dois cultos semanais. E para maior desespero do rapaz, pasmava vê-la nos finais de semana submeter-se a uma sessão de descarrego no velho Centro do Pai Joaquim. Tamanhos compromissos arranjados forçavam o jovem marido a levar uma vida de solteiro compromissado, condição que tanto o martirizava forçado pela fidelidade devotada à mulher.
A natureza não reconhece o bom e o mau, o certo e o errado; a natureza prima pelo equilíbrio. De forma que dá, aos famintos, maior poder de sexualidade e procriação, buscando preservar a espécie; em contrapartida, torna a recíproca verdadeira: barriga cheia, libido vazia. Ocorria Mauro sofrer inversamente nas duas pontas da questão: barriga vazia, libido cheia!
Faço-me entender: Mauro poderia até sublimar suas ânsias com as habilidades culinárias da mulher --- coisa que Mirtes, após o casamento, provou não tê-las --- ou, na pior hipótese, quem sabe, contar com a sua boa vontade em descobrir nos alimentos e nos temperos uma fórmula de minorar a relação. Mas não. Dava de ombros a que um homem pudesse ser fisgado pelo estômago.
Como se via, em que pese a paciência do jovem marido, a mulher revelava-se caso perdido. Para ela, levada pelo desinteresse e pela preguiça, a cozinha tornava-se abominável; aos prazeres da cama, a carolice desregrada conseguira transformá-los num sacrilégio!
É contra-senso negar que um carinho, uma transa ocasional ou simplesmente uma palavra de apoio, embora espaçadas e frias, não tenham o condão de relevar atitudes danosas à relação. No caso, amuos prolongados ocorreram, é bem verdade, entrementes, represálias antes planejadas por Mauro iam sendo adiadas à revelia do tempo, evitando o desenlace que se via iminente e traumático. Ao abrir os olhos, Mauro viu passados três anos.
Conhecemo-nos por volta de 1987. Casou-se um ano depois e testemunhei o seu drama matrimonial durante os anos em que permanecemos na mesma cidade. Éramos amigos e funcionários de certo banco. Amante da literatura, vim a conhecer as peripécias de Catarina e Petruquio em “A Megera Domada” de W.Shakespeare, e via um certo paralelo na vida dos dois casais, embora Mauro não tivesse o cinismo e a coragem pessoal de Petruquio para lidar com a mulher. De intenção velada emprestei-lhe o livro. Pouco depois, transferido, mudou-se com Mirtes e lá se foi o empréstimo.
Me contentaria num daqueles dias futuros, --- onde o casal estivesse, --- eu pudesse ver Mirtes domada juntamente as suas atitudes descabidas, declarando: “E quanto mais quis ser, menos fui!” e Mauro, soberano, finalmente ordenando: “E agora, Mirtes, para a cama!*
Recompensaria, pelo menos, a perda do livro.
Expressão final dita por Petruquio, após domar a megera Catarina, ordenando-a que se
dispusesse a cumprir com as suas obrigações conjugais. (E agora, Catarina, para a cama!)