A história de Sofrínea
Há um mundo bem melhor onde Sofrínea encontraria seus momentos de lazer. Ela vive reclamando que as coisas boas das novelas não acontecem em sua vida. Sofrínea tem 36 anos. Ela é estudante de Psicologia e pretende trabalhar como psicóloga clínica quando terminar seu curso. O seu desejo é ajudar as pessoas a se conhecerem melhor. Sofrínea adorava Freud, mas uma época, seu professor de Psicanálise I – introdução – deu um zero para ela quando ela fez uma resenha que comparava tudo que Freud escreveu com a psicanálise de Lacan.
Sofrínea comentou que no Estádio de Espelho a criança sai de sua crise narcísica para ver o Outro através do espelho. Aliás, Sofrínea nunca entendeu o que era esse negócio de Outro e sentia saudades das aulas de português, em que o outro é um simples pronome que significa diferente.
Depois disso, Sofrínea começou estudar Psicologia Comportamental e disse que era bem mais fácil de entender que esse negócio de Outro, Ego, Superego e tal. O importante era mesmo ajudar os outros. Uma vez, Sofrínea foi fazer um trabalho sobre loucura. Ela estava certa de que o termo não podia mais ser utilizado, porque era desumano falar de louco, sendo que ela mesma não se achava muito normal. Não era estranho nas camisetas do C.A de Psicologia os termos “Ninguém é normal”.
Para esse trabalho, Sofrínea foi visitar o Centro de Internação Santo dos Milagres Impossíveis. As famílias, geralmente, quase sempre, chamavam os bombeiros de sua cidade para levar pacientes psiquiátricos para esse local. O lugar era cheio de gente, separados por gênero e, às vezes, por idade. Mas, o que acontecia mesmo era a separação por infelicidade. Os que estão infelizes ficavam agressivos, começavam por em prática golpes de luta, o que acabava num ombro deslocado, distensão muscular ou algum nariz amassado, de vez em quando.
O que acontecia no CISMI era que todo mundo era cismado com a ala dos praticantes dessa luta e quase todos ficavam na ala dos tristes. Sofrínea foi observar o comportamento das pessoas no local para seu trabalho sobre reforma anti-manicomial. Ela gostava de chegar cedo, que era o momento de maiores ocorrências. Os bombeiros chegavam com uma paciente que se dizia filha de um cantor de música sertaneja famoso. Os bombeiros levaram até o violão sem cordas, desse paciente, para convencê-lo de que ali poderia ser um estúdio de gravação e que dons musicais são hereditários.
Sofrínea ficou impressionada com tudo aquilo. Ela pensava, como pode uma pessoa enganar-se a tal ponto. Na entrada do Centro-hospital tinha um quadro grande com fotos de pacientes fantasiados de personagens que eles sonhavam ser. O quadro dizia: Quem é louco afinal? Essas pessoas, ou a pessoa que está observando esse quadro? Sofrínea morria de medo daquela frase. Uma profecia que a aproximava muito dos limiares entre normalidade e loucura. Todos seus amigos de faculdade tinham reflexões profundas sobre esses limites. O que a deixava tranquila era o fato de que o seu professor mais experiente sempre dizia que pacientes psicóticos surtam antes dos 35 anos de idade. Ela já tinha passado da época. Estava vencida para enlouquecer.
Sofrínea conversava muita com uma paciente que dizia ser Celine Dione. Na verdade, a paciente cantava o tempo todo, e alguns pacientes mais alegres fingiam-se de tristes para ir para ala dos tristes e não ouvir, todo minuto, sua voz estridulante. Sofrínea procurava condicionamentos importantes que levavam Celine Dione a cantarolar o dia inteiro. Sofrínea pensava: talvez ela fosse mais calada se incorporasse uma dançarina de balé.
A época da faculdade estava dura e Sofrínea estava sem tempo para namorar. Ela esperava todo aquele aperto da semana passar para começar sair mais de casa, nos finais de semana, em busca de lugares ditos normais. Os bailes sertanejos, bailes funks ou boates esfumaçadas com alguém compondo o cover de “Leire Gagá”. Nesses lugares, as diferenças com o CISMI eram pequenas e as pessoas incorporavam de tudo um pouco. Sofrínea queria se divertir, apesar de sentir o mesmo medo que sentia no Centro de Internação. Os bombeiros não eram chamados para pegar ninguém nesses lugares. Embora, os níveis de agressão fossem consideráveis.
Sofrínea começou ficar cansada. Um desses finais de semana ela teve uma crise existencial. Não estava gostando das coisas e se questionava sobre o papel da mulher na sociedade. Sofrínea queria ser livre. Ainda morava com os pais, e não entendia direito porque não conseguiu conquistar sua independência financeira.
Seu pai bancava sua faculdade, apesar de que era muito frustrado com sua escolha. Ele queria que ela fizesse Nutrição para ajudar a sua mãe que estava com IMC muito alto. Para ele, compreender e controlar os alimentos seriam a solução para a obesidade de sua mãe. Ela começou a engordar depois que pegou o marido com a irmã, que ela deixara morar em sua casa, depois que se separou de um marido alcoolista que espancou ela alguns anos e quebrou uma mercearia que sustentava a família no interior. Os filhos foram morar com a avó de Sofrínea que sustentava eles com sua aposentadoria.
O que incomodava Sofrínea era o fato de as pessoas buscarem explicações simples para fenômenos complexos e que envolvem perdas emocionais. Sua principal perda era o sumiço de um ex-namorado que resolver trabalhar por conta própria escrevendo o nome das pessoas em grãos de arroz. Sofrínea achava aquilo um absurdo. Seu pai o chamava de “sem-futuro” e Sofrínea separou-se dele após largar a faculdade de Tecnólogo de armazenagem de frigorífico. Ele estava bem e todo mês embolsava quase 5.000 reais escrevendo em arroz e vendendo flores de plástico para casais apaixonados nos bares da cidade vizinha.
Sofrínea tinha medo de nunca embolsar o mesmo valor e chegou a cogitar trocar de curso caso o mercado de trabalho estivesse saturado na área de psicologia clínica. O problema é que considerava que o status de uma profissão é cotado por um conjunto de valores culturais que, há muito, estavam fora da realidade. Para ela, mestres ou profissionais renomados ganhavam muito menos dinheiro que seus amigos vendedores, principalmente, os que iam para o Paraguai e vendiam produtos 10 vezes mais caros do que compravam lá. A crise de especialistas era tremenda e o Paraguai tava rendendo quase 20.000 para a família de uma amiga de faculdade que abandonou o curso para estudar Economia e especialização em Comércio Exterior.
Era muita coisa para cabeça de Sofrínea. Ela não sabia quantos pacientes eram capazes de colocar em primeiro plano suas vidas emocionais para pagar um psicólogo. O certo era que, por experiência, ela já sabia que eles sempre cortavam os gastos com terapia quando o orçamento não ia bem. Mesmo que, este descontrole, fosse resultado de uma compulsividade por compras, geradas pelo mal-estar emocional de um cliente.
Para esquecer um pouco tudo isso, Sofrínea assistia novelas, porque não tinha outra coisa para fazer. Às vezes, dormia em frente à televisão e sonhava que sua vida seria igual ao de alguma Helena que encontrou um ricaço numa lancha e que terminaram felizes para sempre, após um casamento no estilo cinderela. Era mesmo o sonho de metade de suas amigas que não tinham namorado. As outras preferiam pensar num “vale-night” para curtir uma balada e dar alguns beijinhos em algum moço bonitinho que encontrassem perdido por aí. Elas sabiam que tinham muitos homens perdidos e que, ao contrário da época de suas avós, não eram os piores não. Eram muito bons e topavam todas as aventuras para curtir a vida. Hoje muitas pessoas preferem ficar solteiras, e não ligam para preconceitos ultrapassados.
Sofrínea dormiu, sonhou, sonhou e sonhou. Foi acordada por uma voz que gritava: - Sofia, Sofia. Tá na hora! Acordou e pensou de onde tirou essa ideia de que se chamava Sofrínea. Sua vida era tão boa e Sofrínea é um nome tão esquisito, que parece Sofrimento. Hoje estou preparada para ouvir minha paciente Celine Dione e tentar convencer minha mãe que comer é um Comportamento que pode ser mudado com Terapia Comportamental. Olhou para seu pai e pensou: Acho que assim ele sentirá menos culpa e será um pouco mais feliz.
Quaisquer identificações com os nomes, a profissão ou acontecimentos, nesse conto, serão apenas coincidência.