Oh, fezes!
Nessa cidade é muito comum se deparar com sujeitos dormindo pelas calçadas, bêbados. Mas esse, coitado, nos deu um diferencial, algo que chamou mais a atenção que o simples fato de estar dormindo na calçada em pleno dia claro. E esse algo a mais, somado a uma breve afirmação feita pelo tal protagonista desse fato cômico me fez pensar bastante. No entanto, antes de narrar toda essa pequena história e explicar tudo para que pensemos juntos, oremos: “Deus, nosso Deus. Nosso todo poderoso e bondoso Deus, eu imploro em nome de tudo que há de mais sagrado nesse mundo ou em qualquer outro mundo, livrai-nos de tudo e qualquer coisa que até mesmo se pareça com isso. Amém.”
Pois bem, voltando à vida real, descrevo agora a cena nas formas e dimensões em que meus bons olhos a viram: No chão, um tolete de fezes imponente e muito bem afeiçoado, notadamente feito às pressas e recentemente. Havia também várias moscas satisfeitas sobrevoando àquela obra de arte. Logo a frente, a uns dez metros, jazia um sujeito em um sono urgente. Estava meio deitado e meio sentado, escorado num muro. Pernas levemente flexionadas. Enfim, naquela posição em que normalmente ficamos ao ler na cama. Suas calças estavam arriadas abaixo dos joelhos e ele dormia muito confortável encima de mais fezes (e havia mais das moscas satisfeitas). Era muita bosta, meus amigos! Muita merda, que borrava o chão e borracha também sua bunda inteira. Imagino eu que aquele intestino grosso estava mesmo exausto. E me perdoem a comparação infeliz, mas aquilo que meus olhos viam me lembrou muito “A Persistência da Memória” de Salvador Dali. Não sei se era pelo motivo o qual eu sabia que jamais esqueceria aquela imagem. Ou talvez por causa de uma alusão boba aos relógios que derretem na pintura. Ou quem sabe por que o que eu via ali era mesmo surreal. Sei lá, só sei que esse quadro, certamente, não fora pintado por Dali. E nem por mim, claro. No entanto me vi obrigado a interferir. Eu tinha de ajudar aquele pobre ser humano a se livrar daquele vexame. Acordei-o e lhe atirei indagações no intuito de trazê-lo de volta para si, para que percebesse a “merda” em que se encontrava e a “cagada” que acabara de fazer. Porém o individuo me surpreendeu com sua tranqüilidade. Falava comigo como se estivesse tudo normal por ali e isso me intrigou. Mas após muito esforço para não tocar no assunto das fezes, pus tudo a perder. Não resisti, eu tive que observar e então perguntei: “Ora colega, mas então você estava muito ansioso mesmo para defecar, hein?” Com isso ele discretamente examina a própria bunda. Então ao começar a se vestir, ainda sentado no chão, ele olha para mim, com um olhar embriagado e improperado, e replica: “Essa bosta não é minha.”
Meu mundo caiu. Perdi-me completamente. Toda minha consciência se nublou. E agora?... Porém, como um bom pensador que sou, não desisti. Seguem-se então meus pensamentos naquele momento de confusão: “A merda não é dele. ‘E agora, José?’ De quem é a merda então? ‘Ser ou não ser? Eis a questão’. E a bosta não é dele. Mas ‘existem mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia’. Mesmo assim sugiro então que ele talvez deva ter sentado na bosta de alguém, pobre azarento. Mas por quê então arriou as calças, oh meu Deus? Mas se tomo como verdade o que da boca dele saiu, e considero que aquela merda toda não é de fato dele, então a merda de alguém está entrando toda para dentro de sua bunda. Pobre coitado. Um excremento estranho o invadindo sem piedade. Mas nem tão coitado assim, pois mesmo eu sabendo que o mais lógico era acreditar no que eu via, que aquela bosta saía totalmente do cú dele, o sujeito me pegou mesmo nessa. Eu não tinha como provar que aquele cocô nervoso era dele. Que merda! Eu não posso sair dessa tão derrotado e confundido assim...”
Bem, como bem sabemos, os pensamentos são rápidos e incoesos. Assim como acabo de narrar. Pois então, cinco longos segundos após aquela afirmação capciosa e ousada do sujeito, eu lhe dei minha tréplica: “Meu caro colega, se é bem verdade o que acaba de me dizer, então você acaba de se tornar uma lenda. Pois é a primeira vez, em toda a minha vida, que vejo alguém, literalmente, ‘cagando para dentro’.”
Não sei se saí dessa questão por cima ou derrotado. Não sei se essa história pode servir como uma boa e autêntica metáfora, já que há tanta sujeira e bagunça por aqui, e já que quem deveria se preocupar está “cagando”. Só sei que contei tudo como de fato aconteceu, e que apesar de bem trágico, é também uma comédia. E eu me divirto bastante.
Caldas Novas, 2010.
Lucênio Miranda.