ESTRELA CADENTE *
A bateria deu o sinal, ensurdecendo a quadra de esportes, parece que voltou em momentos a olhar os céus estrelados, quando, em sonhos, pensava em desfilar na avenida representando a comunidade do samba.
Naquelas noites, fitando o infinito, a algaravia ritmada dos ensaios eram coisas utópicas, de realidade distante, da laje olhava o firmamento admirando as estrelas, parecia que ser parte da comunidade entusiasmada era sonho impossível para ela.
Mariana Vasconcelos ! A voz entoou no alto falante dando o veredicto do concurso, as pernas tremeram, o chão parecia abrir-se diante tanta emoção. Aplausos entusiasmados da platéia, vencera várias concorrentes, sambistas veteranas na passarela.
Os olhos amendoados, nos cachos negros da cabeleira, mostrando os alvos e perfeitos dentes em lábios carnudos e sensuais, moldado o rosto em sobrancelhas que pareciam desenhadas. O tamanho ideal, as pernas torneadas, a tez aveludada de cor de canela, no bumbum arrebitado. Despontava a nova estrela da festa, vinha para brilhar e se destacar.
- Você tem chances, prima, por que viver sonhando e não ir atrás ? falava sabendo da aspiração da outra. Quantos ensaios individuais, sambando na laje, ouvindo o som da bateria que chegava de longe ? Agora ali estava, escolhida, para reinar na avenida.
- Presta atenção, Mariana, a cliente entrou na loja, vá ver se ela precisa de alguma coisa ! – falou a gerente, trazendo-a ao solo depois de orbitar as estrelas.
A escola dava a oportunidade da escolhida desfilar, mas as despesas com a fantasia era exclusiva da candidata, afinal não havia recursos para custear todos os participantes, ainda que fossem os destaques. Tinha uma pequena verba, irrisória, para a comissão de frente, restando pouco para as passistas.
De novo a prima a impulsionando: já sei, temos muitos amigos, vamos fazer uma rifa e levantar o dinheiro para a alegoria, nada de morrer na praia... Mas, rifar o quê ? Os olhos correram pelas paredes dos cômodos desnudos da alvenaria e nada via que pudesse dispor de interesse a alguém, na condição de um prêmio.
Assim, do final de semana de rainha, aplaudida, passava a viver o inferno da ansiedade, todas as alternativas para arrecadar o dinheiro fulguravam por instantes e se mostravam inúteis a seguir.
Notando o ar distante e preocupado, a gerente da loja, que em raros momentos se mostrava humana, a interpelou: algum problema com você? parece preocupada, calada, não é de seu feitio esse silêncio... Falou do caso sem muito interesse, apenas para satisfazer a curiosidade da chefe, sem esperar retorno algum.
Os dias transcorriam rápido, os ensaios cada vez mais intensos, a data para se apresentar com a fantasia expirava, e nada. Teria, em último caso, de renunciar ao posto. O salário de balconista mal dava para as despesas e a ajuda em casa, não sobrava nada que pudesse gastar naquele empreendimento sonhado. Haveriam outros carnavais, ganhou uma vez, ganharia outras, mas, será que dariam outra oportunidade depois da desistência ? E tudo voltava à estaca zero, nenhuma solução a vista.
Entretida em suas preocupações, não deu pela presença do Sr. Arthur, o patrão.
-Oi, Mariana, parabéns, soube que foi a escolhida para representar a escola no carnaval... (olhando com certa malícia pelo corpo dela) – você mereceu a escolha, com esse visual...
Homem sério, fechado em si, jamais se dera a comentários íntimos com qualquer das várias funcionárias, de se estranhar o imprevisto comportamento do patrão, que, aliás, amiudava nos comentários, vindo, com freqüência, para o térreo da loja, saindo de sua toca do escritório no mezanino. Mais estranho ainda foi ser chamada, antes do fechamento da loja, ao escritório.
- O Sr. chamou ? Já estava me aprontando para ir embora...
- Estava pensando, uma funcionária minha em destaque na Escola de Samba...
- Fique despreocupado, Sr. Arthur, não vai atrapalhar em nada meu serviço, os ensaios são de noite, o desfile será no feriado...( falou apreensiva, antevendo o pior. Só faltava, agora, perder o emprego que fora tão difícil de conseguir, jamais voltaria para serviços domésticos ou cuidar de crianças... )
- Claro que não estava pensando que vai atrapalhar, apenas que poderíamos unir o útil ao agradável...
- Não estou entendendo...(apertava a bolsa com força, como se buscasse ajuda).
- Poderíamos aproveitar sua popularidade no carnaval e promovermos a loja...
- Sério ?! ( não acreditava no que ouvia, era bom demais para ser verdade)
- Estava pensando em tirar algumas fotos suas e colocarmos em pôsteres pelo estabelecimento, a comunidade ficará sabendo que estamos incentivando e promovendo a Escola da região...Nossa funcionária, afinal, será a destaque, não é ?
- Não sei ainda... estou pensando seriamente em desistir.
- Mas, por que ?! Oportunidades dessas não surgem sempre, você não disputou e venceu ?
- Mas não tenho recursos para fazer a fantasia...
- Poderemos acertar isso, como pagamento pelo uso da imagem, um patrocínio, entendeu ?
- ( já tinha ouvido falar em patrocínio, mas nunca entendeu como funcionava) – Não entendo bem disso...
- Nós bancamos as despesas com a fantasia e você nos cede os direitos de explorar a sua imagem nas fotos, simples assim...
- Jura ?! ( parecia que o sonho se materializava quando tudo parecia perdido)
Chegou em casa com o coração alvoroçado, mal conseguia expressar para a prima a novidade.
- É um sonho, Mariana, um sonho que se realiza – comemorou a parente.
O calendário parecia voar, com a verba disponibilizada, a costureira acertava os detalhes finais da roupa, a sandália prateada, de plataforma, já estava guardada na caixa sobre o guarda-roupas.
O que a incomodava, contudo, era a insistência do Sr. Arthur em chamá-la por qualquer razão ao mezanino, fato, aliás, que não passava despercebido pela chefe, a quem cabia passar a ordem para ela subir ao escritório.
Resolveu que iria pessoalmente assisti-la nos ensaios, melhor, que a levaria em seu carro, como sua protegida.
- Mas, seu Arthur, a Escola é próxima de casa, a comunidade me conhece, são todos amigos, de maneira que não tenho necessidade de ser acompanhada, ainda mais chegar de carro...
Não adiantaram os argumentos, tudo aconteceu como ele queria. Não perdeu nenhum dos ensaios a partir de então, inclusive a esperando para levá-la para casa.
Sempre respeitoso, após a saída da Escola, a convidou para irem a uma pizzaria, estava uma noite quente e convidativa para um chope, alegou que precisavam comemorar a parceria. As fotos em breve estariam espalhadas pelo estabelecimento comercial e pela vizinhança, ficaram ótimas, divulgavam a Escola e enalteciam a Loja patrocinadora, tudo perfeito. A musa, em trajes sucintos, exibia todo o seu corpo escultural, em poses de passista, com direito a porta estandarte.
Mais a vontade, despida a carantonha de chefe, animado pela bebida, pareceu até mais jovem na descontração. E, quando a cisma dela parecia ter se desanuviado, na verdade fora avisada pelas colegas de que homem é tudo igual, não dão ponto sem nó, tudo se confirmava, como se cobrasse a fatura das despesas. A leitura telepática vinha dos olhos desejosos, fitando, obsessivo, o belo par de pernas, o decote despreocupado, as mãos abusadas que não se continham.
Mariana viu-se em constrangedora situação, lembrando a Cinderela no badalar das 24 horas, a carruagem de princesa transformada em abóbora. Pensando rápido em como deter os ímpetos já exarcerbados do patrão, desferiu-lhe uma bofetada, atingindo não apenas o rosto dele mas desmoronando seus próprios sonhos. Levantou-se e saiu do bar, dirigindo-se, aturdida, para casa.
Ciente que reinaria absoluta na avenida, aplaudida nas arquibancadas, até a marca da chegada, após, seria uma estrela de vida curta, cadente, e, ainda, desempregada, sonhando com o próximo carnaval...
*SELECIONADO PARA FIGURAR NO LIVRO "PALAVRAS SEM FRONTEIRAS, DO BRASIL PARA A ARGENTINA"
* Selecionado para publicação em livro na antologia CONTOS ARDENTES, editora CBJE - Rio de Janeiro-RJ, janeiro 2015