O entardecer do Homem

O Sr. Cândido, desde muito jovem, apresentava tendências virtuosas. Quando criança nunca pegava os trocos que a mãe, de propósito, deixava sobre a mesa, quando queria comprar doces na doceria da esquina não fazia escândalo, não fazia cara de choro, tampouco interrompia a mãe ou pai, principalmente este; durante as conversas para expressar seu desejo por doces.

Fechava-se na sua amargura, a olhar pela janela as outras crianças a se deliciarem com as mais variadas guloseimas. A mãe, com seu olhar de mãe, que pode ser como qualquer outro, mas que, em certas situações adquire um valor que só a maternidade pode dar, ou o costume, em todo caso fico com o último, ao perceber o desejo e a angústia do filho atendia a todos os seus desejos.

E assim foi durante a adolescência: com poucos amigos, selecionados a dedo entre os mais bem afamados da vizinhança. Era um exemplo de boas maneiras nas reuniões familiares, assim como nos passeios públicos.

O pai orgulhava-se do filho varão que despertava interesse em todas as garotas do bairro e inveja nos vizinhos de sua idade, o que era natural, afinal aqueles sempre a os bandos, rindo o tempo todo, com certas vulgaridades...

Enquanto o Cândido: um gentleman. Evidentemente, como não se relacionava com qualquer um da vizinhança, nunca despertou interesse por nenhuma garota do bairro.

Hoje o Sr. Cândido, casado, pai de dois filhos, vinte anos de vida conjugal com a senhora Eugênia que conhecera no primeiro ano do curso de direito e com quem casara dois anos depois e desde então constituiu uma confortável vida social, filhos saudáveis, bem educados em bons colégios particulares...

Enfim, após uma vida de trabalho, doação à família e a sociedade o Sr. Cândido foi encontrado morto no seu apartamento. O corpo, sentado no sofá cinza de tecido aveludado, apresentava uma postura serena, tranquila.

Na mão direita o revolver calibre 38, comprado recentemente, ainda apresentava vestígios de pólvora, na lateral direita do crânio, um pouco acima do ouvido, o orifício por onde entrara o projétil e do qual jorrava um fio de sangue espesso, tão vermelho quanto o sol da daquele entardecer de verão que ele sempre admirou e que para apreciá-lo ficava horas debruçado no parapeito da varanda do seu apartamento no décimo segundo andar do edifício. Ah! aquele entardecer que sempre lhe conduzia as suas memórias e desejos mais íntimos.

Quais teriam sido as últimas imagens a habitar a sua mente antes dele puxar o gatilho? quem saberá?

O único capaz de responder essa pergunta jaz agora inerte e mesmo se vivo estivesse certamente não as revelaria a ninguém, as guardaria consigo, como sempre o fez, afinal era esse o seu tesouro secreto o qual não queria dividir com o mundo, o que é muito justo.

Diante do corpo, na mesa de centro da espaçosa sala, todas as contas pagas. Na estante da mesma sala, livros diversos, entre os quais alguns clássicos da literatura ocidental que só eram lidos nos momentos de completa solidão, os demais; todos técnicos, eram lidos cotidianamente, uma maneira de atualizar os conhecimentos práticos.

Aliás, praticidade era uma característica do Sr. Cândido, cada ação sua visava sempre um fim prático o que comprova a estabilidade que fora a marca da sua existência até o momento em que o seu cérebro foi atravessado pela bala.

Mas algo contraditório sobre a personalidade do Sr. Cândido foi revelado por um bilhete deixado como seu último ato no teatro da vida, o que, aliás, é prática corriqueira entre os suicidas, e cujo conteúdo vago não explica nada.

Numa folha de papel branco, sem pautas, em letras bem grafadas, uma frase incompreensível:

-"Quanto tempo perdido".

Desipere in loco
Enviado por Desipere in loco em 08/01/2011
Código do texto: T2717293