Babs - Eu abri meus olhos...
Olhei em volta. Meu quarto continuava o mesmo. Ao contrário do que eu pensava, minha vida não se movia se eu não estivesse presente. E eu estava só.
Mas você estava lá.
Sentada na cadeira do computador, em um canto do quarto, você olhava pra mim. Eu disse o meu bom dia de sempre e me levantei. Era uma tarde estranha, mas eu dizia isso todos os dias. Olhei pela janela e vi que as plantas continuavam as mesmas, o concreto continuava o mesmo e o universo também, embora ele gostasse de me dizer que não. Me virei e pedi licença para a cadeira, embora ela nunca me ouvisse.
Perambulei pela casa. Minha mãe dormia, provavelmente exausta com o trabalho noturno. Era um descanso merecido, até sagrado, quase sempre ruim, nunca o suficiente. Continuei minha perambulação, mas não havia mais ninguém. Uma vez havia mais pessoas, mas todos seguiram para suas vidas, e eu sabia que estavam bem lá. Conversei então com a geladeira, o armário de copos, a TV, o espelho... e todos me disseram a mesma coisa.
Eu tinha para onde ir hoje.
Senti seu olhar através das paredes. Ele não me dizia nada, mas as paredes insistiam que isso significava alguma coisa. Troquei de roupa em silêncio. Minha blusa não estava muito conversativa hoje. Ela também sabia o que eu tinha que fazer e me repreendia por estar enrolando.
Acordei minha mãe só o suficiente para pedir o dinheiro da condução. Eu sempre falho miseravelmente e ela se recusa a voltar a dormir, me fazendo todos os tipos de perguntas maternais que passam pela cabeça dela. Eu, por vez, respondo todas as mentiras corriqueiras que passam pela minha cabeça, torcendo para que ela se entedie e volte a dormir. Também nunca dá certo.
Antes de sair, lembro que não me lembrei de pegar o meu celular. Isso é importante, já que é ele quem costuma me lembrar que eu preciso voltar pra casa. Os números na tela e as cores ao fundo me fazem lembrar a foto de uma flor de uma árvore que eu não sei o nome, ofuscado pela luz de uma varanda logo atrás. Você não estava na foto, mas estava lá, não? Houve outras fotos depois dessa, mas essa me veio à mente agora, por algum motivo. Mas isso não importa. Eram outros tempos e, mais importante, outro celular. Até ele seguiu em frente.
Abri e fechei a porta, sem me esquecer de passar por ela dessa vez. Acho que você ainda ficou sentada na cadeira do computador por algum tempo, mas sei que não muito. Você tinha coisas mais importantes para fazer.
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Não me lembro de como cheguei aqui. Não costumo prestar atenção no fluxo das coisas quando estou em um ônibus, então não me preocupo com isso, embora devesse. Resolvo fazer o resto do caminho andando então, só para me redimir. Se você estivesse aqui, eu levaria três, até quatro vezes o tempo que eu levo andando sozinho. Eu reclamaria com você, como todo mundo fazia, mas você só riria da nossa cara e nos lembraria, do seu jeito, que nós sempre deixávamos pra lá. Era mais divertido desse jeito. Não tem graça andar mais rápido se para isso você tiver que estar sozinho.
Mas você não estava comigo. Claro que não. Não estava, porque estava me esperando. E você não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo, não é?
Ou pode?
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De repente eu percebo que estou na frente da sua casa. Eu sempre me esqueço de pegar um caminho que não passe por aqui. Ouço minha blusa chamando minha atenção. Não sei se me perdoou por minha falta de iniciativa mais cedo ou se só ficou entediada. Mas chamou. E isso foi bom. Afinal, as duas são grandes amigas e eu não queria ficar no meio das duas. Elas começaram a conversar sobre a primeira vez que vieram aqui, como eu me sentia perdido e parecia muito mais bobo do que o comum, de como a sua mãe acabou comigo e com a minha baixa auto-estima, de como minhas pernas pareciam engraçadas andando tão devagar...
Elas não gostaram muito dessa conversa.
Eu também não.
Convenci-as rapidamente de que era melhor seguirmos o nosso caminho e deixar as duas faladeiras para trás, mas essas pararam imediatamente de conversar e concordaram que já estava na hora de ir embora. Fiquei relutante em deixar as duas para trás, principalmente a minha blusa, então às levei comigo.
Nós tínhamos que ir. Talvez você não esperasse o dia todo.
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Passei pela recepção e pelos portões de metal. Passar por lá é a parte que eu menos gosto em vir aqui. Me lembra que o mundo não é nada além de um grande negócio e que todos nós vamos virar moeda de troca algum dia. É até engraçado como de repente não ligo para nada disso. Minha mente não parece mais presente. Não sinto cheiro de nada, as cores parecem falsas e sem profundidade, os sons parecem deslocados. Parece até que meu corpo todo saiu de órbita, embora a gravidade ainda me mantivesse no chão. Os morros passam, eu viro a direita na árvore morta com fitas amarradas e conto meus passos. Não lembro a distância, mas geralmente acerto o lugar. Me recuso a te procurar pelos números. Eu nunca gostei deles, embora eles não precisem que eu goste para estarem por toda a parte. Não importa. Já te achei.
Eu olho para você. Seu sorriso peralta, seus óculos de armação grossa e preta, suas roupas descoladas. Me sento de costas, olhando para os morros e para o céu manchado pela favela. Você não está aqui. Tolice minha achar que ainda estaria. Você se foi e levou com você um pedaço da minha glândula pineal. Ela me diz que está tudo bem, que você está bem e que tudo irá melhorar, mas esse é o trabalho dela, por isso não presto muita atenção.
Apenas fecho os olhos.
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Não sei quanto tempo se passou. Talvez vários minutos, uma hora ou alguns segundos. Me levanto, ainda de costas para o seu olhar. Dói demais saber que ele não existe mais, mas você continua sorrindo. Finalmente me viro. Me ajoelho e toco em seu rosto, conectado a uma pequena peça de mármore, conectado a terra em erosão, conectado em você, conectado a todo resto.
Você se foi, nós ficamos.
Sorte sua.