Sonhos e Caminhos

Sobre o parque, a pequena menina de cachos dourados brinca feliz sobre o balanço, já querendo mostrar independência negando as mãos cuidadosas de sua mãe Marta que sorri, enquanto enxerga sua maior dádiva crescer sobre os seus olhos brilhantes de orgulho. Maria Clara já demonstra personalidade forte desde pequena, onde sobre o balanço, ela sorri feliz sem medo algum, enquanto vai de um lado para o outro, impulsionando com seus pezinhos que ainda nem alcançam o gramado, mas que voam alto, assim como seus sonhos ainda intactos. É incrível que, como quando crianças, tudo parece possível, onde nos sentimos invencíveis, como se nada pudesse nos machucar… Enquanto aos olhos de nossos pais, tudo parece poder nos atingir, onde tentam nos proteger de tudo, principalmente deles mesmos.

Clarinha nunca conheceu seu pai, que abandonou sua mãe em plena maternidade e nunca mais deu as caras. Tempos difíceis vieram, mas sua mãe nunca deixou que nada lhe faltasse, que nada lhe atingisse… Ela fora mãe, ela fora pai e seria tudo o que ela precisasse ser para o melhor de clarinha. Marta dois anos após ter dado a luz, depois de se sentir mal e fazer uma bateria de exames, descobriu ter diabetes e sem que clarinha soubesse, ela fora se tratando, mas a doença só piorava e a sua maneira, ela ia seguindo, mantendo ocultos suas dores e efeitos colaterais dos milhares de remédios que ela tinha que tomar.

Numa tarde de domingo, enquanto brincava com pitucha, sua coelhinha branca de estimação, clarinha tropeçou e caiu, ralando seu joelhinho… Sua mãe toda preocupada, correu em sua direção, mas parou quando notou que clarinha estava sorrindo. Enquanto fazia um curativo, Marta disse a clarinha que seu sonho, é que ela se tornasse médica um dia, pois assim, nada poderia atingi-la. Chegou à hora do almoço e Clarinha logo se sentou sobre a mesa em sua cadeirinha, não aceitando que sua mãe lhe desse na boca e a sua maneira, ela foi se lambuzando enquanto se deliciava com a sua sopinha. Logo a lua brilhou linda sobre o céu e toda noite antes de dormir, ela se ajoelha sobre a cama com um terço ganho por sua mãe e reza agradecendo por mais um dia feliz.

O tempo passa e a personalidade de clarinha se mantém, hoje ela é Clara, Maria Clara não, pois pra ela Maria envelhece bastante… hoje ela já escreve, já lê, onde os seus pensamentos já passaram a criar questões sem respostas. Caio Fernando de Abreu e Clarice Lispector, passaram a ser sua fonte de inspiração e sua mãe continua sendo seu maior ídolo. Em seu diário, ela passa a escrever sobre o seu dia a dia, suas novas experiências, suas descobertas e afins. Seu sonho de ser médica, como sua mãe também havia sonhado, fora deixado de lado, a arte passou a ser o seu sonho, onde ela passou a atuar em teatros, em peças que ela mesma escrevia, até que lhe surgiu uma grande oportunidade, onde haveria uma audição para um papel muito bem cotado e que por ela passou a ser almejado… ela então passou a se dedicar arduamente, dias e noites estudando o papel, correndo atrás de apoio, pois ela teria que viajar e como sempre, sua mãe sempre fazendo o possível e o impossível para lhe ajudar. Clara estava decidida a conseguir esse papel e ninguém lhe tiraria isso da cabeça e em pouco tempo, lá estava ela num vôo rumo aos seus sonhos e ao chegar ao seu objetivo, para a sua surpresa, havia uma fila que rodeava quarteirões, milhares de garotas com olhares confiantes querendo o mesmo papel… Clara então caminhou até o fim da fila olhando nos olhos de cada uma delas e quando chegou ao fim, ela sorriu e sussurrou pra si mesma: “É meu”. E de fato foi… Ela se tornou a atriz principal da peça que rodou o mundo por três anos, até que ela recebera a triste notícia que sua mãe havia falecido. O mundo de Clara desabou e sem pensar muito, ela voltou pra casa, mas não teve forças para ir ao enterro daquela que sempre a apoiou em tudo e que sempre esteve ao seu lado.

O tempo passou e Clara deixou a arte de lado para novamente se dedicar a medicina, se apegando aos sonhos de sua mãe, o ensino médio estava chegando ao fim e ela precisava retomar os estudos, mas as lembranças de sua mãe passaram a lhe tirar o foco, então ela se entregou as preces, onde passou a orar para que tudo desse certo, pois já não tinha mais forças para lutar como antes… Logo as provas chegaram e Clara conseguiu uma bolsa em uma boa universidade e desde então, ela passou a seguir os caminhos da igreja…

Hoje Clara é Maria Clara Torres, formada em medicina, no entanto, uma mulher solitária e deprimida, onde ao seguir um caminho que não era seu, se viu sem rumo, onde se entregando ao primeiro trago e a partir daí, sua vida só desabou. Aquela menina sonhadora que balançava o balanço com seus pezinhos flutuantes e que sorria feliz, se perdeu junto a sua fé e a sua invencibilidade deu lugar aos seus medos, onde ela vive em cada tragada, momentos de fuga, onde passou a fugir do mundo, a fugir de si mesma, esquecendo seus sonhos e seus propósitos… Comparando passado e presente, se perguntando como teria sido se nada tivesse seguido rumos inesperados. Seu diário ganhou um vazio, paginas e mais paginas em branco, mostrando bem a lacuna criada em sua vida, até que enquanto rasgava mais uma pagina para tragar mais um capítulo em branco, ela se deparou com uma fotografia sua junto a sua mãe, aquilo foi como um desfibrilador em seu peito, onde após tanto tempo, sentiu seu coração pulsar novamente, como acordar de um pesadelo, como respirar fundo após ter perdido o fôlego, ela então chorou todas as lágrimas contidas e decidiu ir até a sepultura de sua mãe visitá-la finalmente.

Clara foi até o jardim de sua casa e notou que o gramado precisava ser aparado e ela então colheu algumas rosas brancas e tulipas, todas plantadas por sua mãe, eram suas flores favoritas e antes que o dia anoitecesse, ela partiu rumo a sua mais triste despedida. O dia estava nublado, assim como os seus sentimentos e ao atravessar os portões do cemitério, um aperto no coração lhe tomou, mas ela respirou fundo e seguiu até a sepultura de sua mãe. As lágrimas não paravam de escorrer sobre a sua face, ela então deixou as flores sobre a lápide de sua mãe, enquanto sentia a chuva fina e fria cair sobre os seus cabelos, suas lágrimas quentes ainda mantinham as lembranças intensas em sua mente e ali ela ficou, até anoitecer e adormecer.

Após a despedida, Maria Clara enfim seguiu, recomeçou do zero e hoje ela faz parte de uma ONG criada por ela mesma, onde a intitulou com o nome de sua mãe, onde ajuda na recuperação de dependentes químicos… Ela também passou a escrever poesias e crônicas que viraram livros de sucesso e o seu diário virou uma adaptação para o cinema, onde ao termino do filme, lá está o texto que finalizou o seu diário:

"Você já se perguntou se somos nós que fazemos os momentos em nossas vidas ou se são os momentos da nossa vida que nos fazem? Durante muito tempo, pensei que os meus sonhos me guiavam, até que eles se perderam e a vida me fez ser o que sou hoje... Às vezes nos sentimos invencíveis, até que conhecemos a dor pela primeira vez e nesse momento, percebemos o quão frágil pode vir a serem as nossas vidas. Sobrevivi a muitas coisas, principalmente a mim mesma… Vai ver a vida é isso, sobreviver e eu sou uma sobrevivente e assim eu sigo, mas eu não sigo sozinha, ao meu lado, existe um alguém que sempre esteve ao meu lado, um alguém que soube fazer a diferença em minha vida e eu não podia deixar de lutar, não após tudo o que ela fez por mim… Em memória a pessoa mais querida desse mundo, aquela que soube me mostrar o caminho e que até hoje, me guia de alguma forma… A Marta, minha mãe, meu anjo, meu caminho…"

(Rascunho)