O ENCONTRO - história da educação

O ENCONTRO

- Poxa, professor, há tempos que venho tentando sair com você e você sempre me ignorando! Será que não valho a pena nem um pouquinho - disse a insinuante Camila, exibindo maliciosamente o corpo, ao professor de Química Mário.

Esse diálogo estava ocorrendo num lugar qualquer do pátio de tradicional colégio de São Paulo. O tempo: nos idos de meados dos anos 70, 1970. Camila era terceiranista da melhor turma desse colégio. Naquele dia em especial, frente a frente com seu objeto de desejo (vinha se “derretendo” por esse professor desde fevereiro, numa espécie de paixão repentina despertada na ebulição dos hormônios dos 17 aninhos, já que tinha sido aluna dele nos dois anos anteriores também sem nenhum sentimento especial!), apenas com a blusinha e a sainha do uniforme, e destacando-se, no esplendor de sua adolescência, a exuberância prática de suas intenções, clareadas por uma espécie de dois insistentes faroizinhos saltados na maciez do tecido de boa qualidade de sua camisetinha. Queria estar irresistível naquela cartada final.

Esse tradicional colégio tinha um diretor também tradicional, conservador, impoluto, que pretendia e se gabava de manter a disciplina nos moldes daqueles vetustos colégios ingleses que estamos acostumados a ver em filmes. Um senhor de seus setenta anos, sempre impecavelmente vestido à inglesa, fala mansa e anacrônica, a sua simples presença acabava impondo o respeito que se tem quase que naturalmente pelos ícones. E era o que ele pretendia ser: um ícone da educação burguesa paulistana. Empertigado, caminhava pelos corredores, assenhoreando-se da crença numa disciplina inigualável. E professores cumprindo sua missão de transmitir aqueles conteúdos consagrados, o que garantia ao colégio a fama de um ensino exemplar.

Esse era o ambiente, o contexto físico em que a esplendorosa adolescente decidiu partir ao ataque definitivo para cima daquele desejado (havia uma espécie de disputa por ele entre as garotas) professor de Química. O mês: abril do longínquo ano de 1975.

- Mas, menina, o que você quer? Você não vê que sou noivo, que tenho minhas responsabilidades sociais e pessoais? Não vê que tenho quase o dobro da sua idade e que é contra a ética uma barbaridade dessas! – disse não tão convicto o agora inseguro Mário, tendo a pressioná-lo a sereia insinuante que se ocultava sob o tecido de boa qualidade da camiseta da exuberante garota e se sobrepunha a qualquer lógica guardiã de resistência moral! Afinal, homem que é homem nunca foi e nunca será maior que a natureza divina. E se ela fez aquela mulher daquele jeito, com um sorriso malicioso e uma “comissão de frente” berrando “veja o que você perderia!”, nem o mais intenso, puro e verdadeiro amor à noiva poderia combater esse “demônio”! Mário estava, pois, por um fio para ceder.

- Mas eu não quero nada, professor, não quero atrapalhar sua vida pessoal nem profissional, professor, quero apenas sentar-me numa mesa, beber algo e conversar com você, ficar te olhando, apreciando, quero sentir esse prazer da sua companhia, tudo que meus sentimentos têm direito. Nada mais, professor – atalhou a jovem com tal sinceridade que parecia a mais ingênua dos mortais. Tudo bem treinadinho e decoradíssimo!

Mário, instintivamente tentando não fixar os olhos na exasperação física da garota que o estava impressionando, pressionando e desarvorando seu pensamento, tentou ainda, já com mínimas forças, resistir:

- Não vai dar certo, Camila. Eu não posso sair com você nem pra tomar um café sequer, que vão dizer coisas, você sabe como é o ambiente escolar, vão achar que nós.... E eu sou noivo, não posso, trabalho aqui, você estuda aqui, sei lá... acho que não vai dar certo nem pra tomar um refrigerante, vão falar, vão achar que... é melhor não, Camila, gosto de você mas... sei lá... acho que não... - tartamudeava o inquieto professor.

Ali, frente a frente, ocorria uma luta injusta: a força dela, respaldada no esplendor da beleza versus o não-querer-querendo dele. E a diabólica adolescente percebeu claramente que tinha o poder, que o derrubaria finalmente, três meses após sua primeira investida. Finalmente! Finalmente! E contra-atacou com delicadeza, insinuação plena e intimidade:

- Mas, Mário querido, o que você tem a perder em se sentar comigo e tomarmos alguma coisa enquanto conversamos? Podemos conversar até sobre a lição, se você quiser. Vamos, vai, não custa nada. Prometo não te arrancar pedaços  argu-mentou sorrindo irresistivelmente e fingindo afastar qualquer possibilidade de contato físico entre eles. E, ao falar, se aprumava, se empertigava, fazendo salientar ainda mais a arma que ela descobrira capaz de derrubar a fortaleza dele. E os faroizinhos, cúmplices dela, como que ganhavam mais poder diante dos olhos de Mário, fazendo desmoronar os últimos lampejos de sua resistência.

- Tá bom, vai. Onde você quer tomar esse refrigerante? – disse um enfraquecido Mário, derrotado no seu conceito, no seu orgulho de não resistir a um sorriso e a uma paixão por uma obra de arte da natureza. - Escolha o lugar e lá estarei - disse.

A garota, vitoriosa, sorridente, alegre, marcou o encontro, o horário, o local, Av. Faria Lima, e virou as costas, correndo, temendo que ele se arrependesse. Ela, que vinha sendo motivo de chacota das coleguinhas por não conseguir nada, correu para espalhar a sua incontestável vitória, seria hoje, às quatro da tarde, ela o teria, ele cedeu, o inexpugnável caiu, o invencível foi vencido, as outras perderam, ninguém tinha conseguido, só ela conseguiu, vocês viram, eu consegui, ele vai, ele vai, ele caiu...

Mário foi se aproximando do lugar do encontro, Camila lá estava na sua beleza, encostada no muro de uma esquina, Mário se aproximando, ela sorrindo, feliz, Mário mais próximo, poucos metros, ela rindo, alegre, esfregando as mãos, Mário bem próximo, cinco metros apenas os separa-vam... De repente, sai de trás do muro da esquina a classe inteira do 3º colegial A, a elite do tradicional colégio, todos os alunos, não faltava um, todos sorrindo, urrando, berrando, alguns gesticulando coisas obscenas, outros batendo palmas, sorrisos maliciosos e de chacota.

Os transeuntes, meio incomodados, nada entendiam do que estava aconte-cendo. Mário estacou. Era a estampa da humilhação e da vergonha. Não deu um passo e por alguns segundos sequer conseguiu se mover. Nem pra frente, nem pra trás. Rosto vermelho, o vermelho da vergonha, não do ódio. A boca semiaberta, o olhar questionador fixo em Camila, o vexame pelo corpo inteiro. E as palmas continuavam, os sorrisos, as chacotas, as gozações.

Por fim, Mário consegue se movimentar, vira as costas e sai andando, ou melhor, quase correndo, afastando-se daquelas palmas, daquelas risadas, e quanto mais distante ele ficava delas, mais fortes elas explodiam dentro do seu cérebro, alfinetando-o, levando-o finalmente ao ódio. Vergonha plena! Humilhação inconcebível! Maldade infernal! O que ele tinha feito para aqueles alunos!? E para ela?!!! Teria sido ele um monstro para merecer isso!? Purgou intensamente sua dor o resto do dia.

Dia seguinte, as duas primeiras aulas naquela classe eram dele. Entrou como se nada tivesse acontecido, arrumou o material sobre a mesa, fez a chamada como sempre. Em seguida, apontando para Camila o dedo acusatoriamente, em riste, e com aquele movimento constante pra cima, pra baixo:

- Menina, você é uma puta! - bradou com a boca cheia, muito cheia do ódio e da confiança naquilo que tinha planejado fazer e ensaiado em todos os mínimos detalhes! - Você é uma puta muito vulgar, sua vaga-bunda! - repetiu, com o dedo em movimento mais forte e as palavras mais retumbantes ainda! Ato contínuo, afastou-se dela, ficou bem na frente da classe e, fazendo o gesto do círculo com a mão, explodiu:

- E vocês, vocês são um bando de filhos da puta! - vociferou, com as palavras escapando-lhe da boca com a força de ferinos raios! Um bando de filhos da puta e viados e putas! - insistiu, distribuindo raios acusadores em todas as direções.

Voltou-lhes as costas e disse, apa-rentando uma calma inexistente:

- Vamos à aula agora! E começou a escrever alguma coisa na lousa.

Mas, quando ele tinha virado as costas, um dos alunos, rápido, tinha saído e busca-do aquele diretor empertigado. O professor dando aula, ou melhor, fingindo, porque ninguém estava concentrado, muito menos ele, chega o diretor e, amparado no poder da força de dono, entra na classe sem pedir licença e já vai falando:

- Professor, esse mancebo foi me buscar dizendo que o senhor tinha usado palavras de baixo calão dentro da sala de aula, professor! - falou com a mansidão da impoluibilidade de sua imagem, do alto do seu poder, certo de que essas características lhe garantiam a subserviência do outro. Mário, com uma tranqüilidade que não cabia naquele contexto, olhou para o “deus”, mirou-o com seus raios:

- Não, senhor, não, senhor, eu não falei nada! A única coisa que eu disse foi - e virando-se para Camila, apontando-lhe gravemente o dedo indicador: - o que eu disse, senhor diretor, é que essa menina aqui, essa aqui, é uma puta deslavada, uma vagabunda bem vulgar! - e afastando-se um pouco, olhou bem no olho do diretor e, voltando-se para a turma, com aquele dedo acusador circulando querendo abarcar o todo da classe, bradou: - e disse que esses todos, esses mesmos que o senhor está vendo, são um bando de filhos da puta, de viados e de putas!, sim, filhos da puta, viados e putas! - e, finalmente, voltando-se para o próprio diretor, fuzilou:

- E o senhor, o senhor que vá pra puta que o pariu!

Ato contínuo, pegou suas coisas, saiu da sala, bateu a porta com tanta força e estrondo a ponto de saírem pedacinhos de cimento e tinta da parede, foi embora pra nunca mais voltar, deixando a classe e o diretor boquiabertos, estagnados, humilha-dos, envergonhados, com a mesma ausên-cia de reação que havia ocorrido a ele no momento da sua humilhação.

Leo Ricino

Abril de 2006

Obs.: Essa história me foi relatada, três meses depois de acontecida, pela própria vítima, que abandonou a carreira de professor e foi trabalhar como engenheiro químico em indústria química. Nunca mais voltou a ser professor.

Leo Ricino
Enviado por Leo Ricino em 02/01/2011
Reeditado em 02/01/2011
Código do texto: T2704400