Como em todos os anos...

Seu ano já estava no fim, não entendia muito bem o fato de uma simples mudança nos calendários ter tamanha influencia sobre suas emoções, tampouco queria entender. Concentrava-se na organização anual de suas gavetas, separava o que já não lhe importava e jogava nos montes de lixo ou do que seria doado, o que permanecia ia para um canto para ser estudado seu local de permanência.

Retirava os objetos que sobravam do fundo, eram aqueles esquecidos, porém de tamanho significado, não podiam ser desfeitos, mas também não precisavam estar a vista, eram apenas para serem guardados. Mas naquela época, no fim de uma data, eram sempre trazidos à tona. Seus olhos claros ajudados pelos dedos que serenamente tateavam as superfícies, observavam cada detalhe dos objetos. Em cada um uma lembrança, um sentimento, uma saudade. Como toda saudade, acompanhada com doses desiguais de dor e felicidade.

O fato de organizar suas gavetas era apenas um pretexto, desapegada como se autodenominava, esforçava-se naquele exercício anual, naqueles instantes as gavetas de sua mente também eram organizadas, reorganizadas. Ela precisava, era necessário. A cada objeto separado, acumulado, percebia sua vida diante de si, seus afetos, sentimentos de infância à estranha realidade adulta que lhe surpreendia.

Caminhou até seu criado mudo apanhou o cigarro e se ajeitou na janela. Com as gavetas abertas detrás de si e a cidade cosmopolita em sua vista, queimou o cigarro e contemplava sua fumaça. Enquanto batia as cinzas no beiral, chorava, como em todos os anos; Apertava em seu peito as lembranças de todos aqueles de quem ouvia um voto de boas festas em todos aqueles anos e não estavam mais por este plano para desejar novamente como em todos os anos que se passaram. O cigarro ia se acabando, e sua nostalgia seguia no caminho inverso, colocava em sua vista o reflexo de sua infância, como em todos os anos. Pensou nos amores passados, e daqueles tantos inventados no ano que se findava. Questionava seus amores, e o que realmente sentia.

Jogou a bituca em seu cinzeiro, olhou para trás e se deu conta da bagunça de gavetas em seu quarto, respirou fundo e se deu conta de que tudo precisava estar ordem, as gavetas ainda precisavam de espaço para as coisas que restariam daquele ano. Sentiu o pesar de se desfazer do monte acumulado. Mas era necessário, era seu ritual, sua despedida, sua lavagem... como em todos os anos.