LEITE CONDENSADO

- A janta estava uma delícia, amor... – comentou a esposa, arrastando a cadeira um pouco para trás a fim de esticar os braços para o alto, em um gesto que misturava cansaço e satisfação.

- Ah, que bom que gostasse! E vocês, moleques, comeram tudo? – o marido elevou uma das sobrancelhas, fazendo uma careta debochada que fingia irritação; sabia que as crianças haviam terminado a refeição. Queria elogios, na verdade.

- Eu comi tudo!!

- Eu também!!!

Os dois meninos, de oito e quatro anos, adoravam o jantar em família. O pai fazia palhaçadas e contava mentiras descaradas enquanto colocava a mesa, ao passo que a mãe, após chegar cansada do trabalho, sentava e ficava observando a festa dos meninos com o marido. Como o jantar era o único momento de reunião, o homem preparava tudo com cuidado e esmero, como uma deliciosa compensação pelos sacrifícios daquele longo e cansativo dia de verão. Assim, todos sentavam e aproveitavam a sempre saborosa janta e a companhia uns dos outros.

A esposa era uma figura quase à parte desta cena familiar. Sempre exaurida das jornadas pesadas que enfrentava diariamente, participava pouco das brincadeiras e conversas na hora da refeição, embora adorasse aquele momento; desta forma, sorria com satisfação e aguentava ali o máximo que podia, antes que o sono a dominasse e a conduzisse para o quarto. Paradoxalmente, entretanto, sentia-se triste. Sabia que a rotina atarefada a fazia perder a melhor parte da infância dos filhos, levando-a a sentir-se, por vezes, tão distante que, eventualmente, imaginava-se uma estranha naquele ambiente de intimidade e amor. Após um esforço, sempre conseguia afastar este pensamento, relembrando sua importante função na estrutura da família e como todos dependiam dela. Tentava encorajar-se, então; não podia fraquejar.

O marido, ao contrário, sabia ser o centro das atenções, e empenhava-se para fazer de tudo aquilo uma grande festa: começava a trabalhar na ideia do jantar à tarde, escolhendo o prato e comprando ingredientes; aquele momento era sua prioridade na vida. Engenheiro mecânico, trabalhara, há anos, em uma empresa multinacional. Entretanto, acordou com o pé esquerdo em um dia chuvoso e, após ouvir terríveis críticas do chefe sobre seu trabalho, mandou o manda-chuva tomar naquele lugar e parou de trabalhar para estranhos: “são uns ingratos”, afirmava. Transformou a família em seu emprego, e nunca se sentira tão feliz. Levava e buscava as crianças na escola e fazia questão de acordar cedo para deixar a esposa no serviço: “não vale a pena tu ir de carro, não tem estacionamentos bons no centro e não dá pra deixar em qualquer lugar”, mentia.

Naquela noite, havia se superado: preparara uma bela alcatra grelhada, acompanhada, como julgava indispensável, pelo famoso molho chimichurri, especialidade da culinária uruguaia. Os meninos divertiam-se com o nome do prato, fazendo biquinhos e trejeitos para falar, caçoando do pai, e forçando a mãe a fazer o mesmo.

Satisfeito por perceber que a comida havia feito sucesso, o homem agora sorria docemente e enrolava um cacho de cabelo com o dedo, hábito, aliás, que a esposa detestava. De repente, estacou.

- Não acredito – murmurou, com cara de espanto – esqueci a sobremesa!

- Ah, querido, não faz mal. Acho que não sobrou espaço pra mais nada. – mentiu a mãe, sentindo falta do docinho habitual.

- Não, não, isto é imperdoável... A gente sempre come uma sobremesa depois da janta. Eu não devia ter me esquecido... É minha obrigação lembrar.

- Deixa de ser bobo, amor! Estava tudo perfeito, né, guris? – a mulher levantou-se e foi até a cadeira em que estava sentado o marido, abraçando-o por trás.

- Ah, eu queria sobremesa... – reclamou, no entanto, o mais velho, no mais alto grau de sinceridade infantil, não percebendo o esforço da mãe em agradar o pai. A mulher fuzilou-o com os olhos.

O marido, desanimado por deixar seu público na mão, desvencilhou-se dos braços da mulher e ergueu-se.

- Desculpem, pessoal. Vou ver se acho alguma coisa na despensa...

Mal saiu e a mãe ralhou muito com os filhos, explicando a importância de contar algumas mentirinhas, às vezes, pra não magoar as pessoas que a gente ama... Papo de mãe.

Quando voltou, entretanto, o marido perdera já qualquer resquício de insatisfação e a velha cara de deboche estava de volta. Com uma das mãos escondida nas costas, pediu para os meninos que fechassem os olhos e abrissem as mãos. Os guris, logicamente, nem pensaram duas vezes; rindo-se, fizeram o que o pai mandara, imediatamente.

A mãe, mais curiosa que os filhos, à base de mímicas, indagou o marido. O homem então mostrou: duas lindas e reluzentes latas de leite condensado.

Curiosamente, a mulher ficou séria. Fez que não com a cabeça, mas o marido não deu importância: soltou uma lata em cada mão, e não conseguiu conter por mais tempo os olhinhos fechados. Os guris estanharam:

- Leite condensado... Puro?

O homem não disse nada, andou até o armário e pegou o abridor de latas; após, fez dois furinhos em cada lata, um em cada lado oposto da circunferência superior da mesma.

- Bebam. Sejam bem vindos à vida.

Os guris beberam e, após o primeiro gole, o pequeno fez uma careta impagável, com as sobrancelhas erguidas numa cara de espanto; apaixonara-se à primeira vista.

A esposa não quis a sobremesa, e apressou-se para o quarto, subitamente transtornada. O marido ia persegui-la, mas ao ver a inocência e satisfação dos filhos bebendo das latinhas, não quis perder o momento; ficou lá, sentado em silêncio observando os pequenos, com um sorriso bobo na cara que não parecia desfazer-se nunca.

Após um instante, sem que ninguém visse, uma lágrima escorreu por seu rosto.

"Primavera de 1975. A esposa prepara o jantar na cozinha, com o avental na cintura, satisfeita com a temperatura amena e com a confraternização em família que ocorrerá aquela noite. As outras mulheres também participam, cada qual em uma função diferente: uma corta as batatas, a outra pica os legumes, enquanto a sogra tempera a carne. Esta, por sinal, é quem manda; vai fornecendo as instruções e recomendações minuciosas para as noras seguirem. “Uma boa mulher deve dominar a arte da cozinha”, dizia.

Os homens estão na sala, assistindo ao futebol. A cerveja está sempre gelada, pois a esposa vai e vem constantemente substituindo a garrafa vazia por outra cheia. Ao chegar à sala, sempre pergunta ao marido, apenas para participar: “quanto tá, amor?”. “0 a 0”, responde, sem olhar para a mulher. Para ela, estava sempre 0 a 0.

As crianças brincam na rua, sujando-se o máximo que podem. A bola não para nunca de quicar, de subir e de cair, sempre encontrando um pé torto pra rebater, ou um pé suave para aparar. A cada três gols, fazem a hora do intervalo. Sentam e conversam. É quando começam as traquinagens.

- Pô, estou com fome! – diz Pedro, o dono da casa, enquanto enrola um cacho de cabelo com o dedo, despreocupadamente.

- A tua mãe não tem leite condensado em casa? – pergunta Maurício, o primo mais velho e mais levado.

- Acho que tem, por quê?

- A gente podia pegar uma lata... Só pra enganar o estômago antes da janta...Tua mãe nem ia perceber.

- Tá loco, Maurício, meu pai me mata!

Mas, nessa hora, os outros dois primos, mais novos, já tinham aderido à ideia do mais velho, não deixando muitas escolhas para Pedro, o qual, diga-se de passagem, também não resistiu muito.

- Nunca bebi leite condensado... É bom? – perguntou um dos guris.

- Tá brincando? É muito bom! É o melhor doce que existe!

Depois de muita conversa, bolaram um plano. Nele, como sempre, Pedro é quem se arriscaria.

O guri, com a bola embaixo do braço, foi até a cozinha, pré-requisito para alcançar a despensa e, consequentemente, o leite condensado.

- Mãe, falta muito? Eu tô com fome! – questionou, cheio de más intenções.

- Mais ou menos, filho, come uma fruta pra enganar o estômago...

- Tá bem, vou lá pegar... – e correu até a despensa.

- Pedro! As frutas não estão aí, estão na fruteira.

Depois de um momento, o guri voltou.

- Ah é, tinha esquecido... – pegou uma banana na fruteira e saiu correndo pra rua.

- Os guris estão aprontando... – declarou a sogra, sagaz como uma raposa.

A gurizada abriu a lata com uma pedra e fez o líquido render. Passavam de boca em boca, ficando sempre um de vigia pro caso de algum adulto aparecer. A única falha do plano perfeito foi que a mãe de Pedro contava com a lata para o pudim que seria feito aquela noite. Quando perguntou a Pedro, a cara do guri o delatou. A mãe ralhou com o filho, que só ficou com medo de verdade quando percebeu que o pai estava por perto. O homem encarou-o com um olhar duro, mas quando viu a cara dos outros guris, percebeu que se tratava de uma obra coletiva. Sem mais o que fazer, achou graça.

Pedro, ao longo de sua vida, roubou algumas outras latas, nem sempre escapando impune, como neste dia. O fato é que nunca conseguiu esquecer aquele sabor perolado, que parecia ter o gosto de sua infância."

- Tu estás bem, amor? – questionou o marido, à porta do quarto, percebendo que a mulher, no escuro, chorava copiosamente.

- Me deixa quieta, por favor.

- Não posso, desculpa. Foi alguma coisa no trabalho ou fui eu? – o marido foi penetrando, aos poucos, na penumbra da esposa.

- Nenhum dos dois...

- Quer conversar?

"Inverno de 1986. Os pais saíram e Beatriz está sozinha com a avó. A dupla assiste a um romance na televisão; a pequena acha a estória muito linda, não consegue desgrudar os olhos. Está realizada; adora quando o pai e a mãe a deixam sob os cuidados da velhinha. Esta, com seu pique de criança, sempre leva uma fita cassete com lindos filmes sobre contos de fadas e histórias de amor. Faz pipocas ou compra chocolates, para desespero da mãe da guria, a qual não gosta que a filha coma guloseimas: “vais ficar uma baleia!”, costuma dizer.

Esta tarde, porém, talvez prevenindo possíveis retaliações da filha, a avó não trouxe nada de gostoso, para a decepção da neta. Conseguiram resistir à tentação durante quase todo o filme, porém, após uma longa sequência de choradeiras, a velha não se controlou:

- Tua mãe não precisa saber se a gente comer uma doçurinha, né? – perguntou, já apertando o stop e levantando-se.

Beatriz não soube responder; ama os doces na mesma proporção com que se preocupa com a reação da mãe. Mas gosta tanto dos programas com a avó que, após um instante, não pode segurar um sorriso de orelha a orelha. Soou como uma resposta alta e clara: não, a mãe não precisa saber.

- Essa é minha guria! – exclama a velha, quase correndo, com seu jeito expansivo, em direção à cozinha. – Filha, tu sabe que tua mãe é meio exagerada, né? Não tem problema comer uma coisinha gostosa, de vez em quando. Não precisas te preocupar, viu? – completa, não querendo que a guria sinta-se culpada pela pequena traquinagem.

Mesmo mais tranquila, Beatriz não pode conter o ímpeto de correr até a janela e verificar se o carro dos pais não está chegando.

A avó demora-se um instante, mas, quando volta, a lata de leite condensado que encontrara na cozinha já está destampada, deixando o líquido cremoso quase transbordar. Sentam-se novamente, e o filme pareceu muito melhor a partir de então. Beatriz aproveita; a colher, gigante para suas pequenas mãos, não para um minuto, indo e voltando da saborosa lata. A menina, ao final da sessão, está lambuzada até aos cabelos, e satisfeita como poucas vezes sentira-se na vida. O dia foi perfeito.

A avó, notando a hora adiantada, apressa-se em limpar tudo.

- Vamos organizar esta bagunça: teus pais devem estar chegando!

- Já chegamos. – afirma uma voz vinda da porta. A mãe, descontrolada, explode – O que significa isso? Tu tá toda suja, Beatriz! Comendo leite condensado!? Vocês parecem duas porcas! Que nojo!

- Olha como fala comigo! – reage a avó.

- Não te preocupa, nunca mais te incomodamos! Não quero que tu cuide da Beatriz nunca mais. Tu não tem responsabilidade, mãe.

O bate-boca intensifica-se e dura muito tempo. O pai de Beatriz finge que não vê nada e vai direto para seu quarto, de onde não sai mais aquele dia. A avó prepara-se para ir embora, mas, antes, vira-se e encara tristemente a netinha querida; sente pena dela.

A mãe, ainda transtornada, leva a filha para o banheiro, e a manda tomar banho, tirar aquela sujeira.

- Comendo porcarias o dia inteiro! Quando tu ficares obesa, vais lembrar do que te digo. Tu não queres arrumar um marido? Não queres ser uma boa esposa? Então tens que cuidar do teu corpo, pra que tu possa trabalhar bastante e cuidar muito bem do teu homem. Tu não vê essas gurias gordas andando pela rua? Tu acha que é fácil pra elas casar? Então, tens que ficar linda, deixar sempre a tua casa linda, pra receber o teu marido, todos os dias, com um sorriso no rosto... – a mulher respira fundo, tenta se acalmar – Só falo isso porque te amo, viu? E quero o melhor para ti.

A guria, tão pequena e tão envergonhada, com lágrimas escorrendo pela face branca, pede desculpas para a mãe e tenta abraçá-la. “Depois do banho”, afirma a mulher, “agora tu estás imunda”. Beatriz fica sozinha e, após refletir um instante, levanta a tampa do vaso e força o vômito. Quer ficar linda para seu marido."

Mais um dia cansativo termina.

Os guris ainda tentam permanecer acordados por um tempo, pedem para jogar uma partidinha de futebol no vídeo-game, mas o pai trata logo de cortar suas intenções. “Vocês têm aula amanhã cedo”, afirma o homem, mais bondoso que nunca. Acompanha os guris com marcação cerrada, parecida com a que exercia nos tempos de futebol com os primos; os filhos, sempre que enrolavam para dormir, acordavam cansados no dia seguinte, e era um sacrifício tirá-los da cama.

O homem ainda aproveitou o silêncio da madrugada para ouvir um pouco de música enquanto lavava a louça do jantar. Estava triste com a situação da esposa. Jamais seria seu objetivo magoar a amada, embora soubesse que certos fantasmas devem ser expurgados, mais cedo ou mais tarde. Terminou os afazeres e foi para a cama; o dia, também para ele, havia sido pesado.

A casa repousava tranquila, imersa na escuridão.

Entretanto, em meio à madrugada serena, ouve-se passos no corredor. Alguém anda pé-ante-pé, sem fazer barulho algum ou ligar nenhuma luz. Tal qual um espírito inquieto, surge, na cozinha, a mulher, com os olhos marcados de choro, mas não de sono. Em silêncio, abre a porta da geladeira e é atingida por uma bomba de luz, a qual lhe fere os olhos. Quando estes se acostumam com a claridade, retira um objeto do suporte da porta: a lata de leite condensado, já furada, que sobrou da sobremesa dos meninos.

Olha para os lados, reticente, e encara seu trauma. Após um segundo de hesitação, põe a lata na boca e desfere um gole longo e profundo, do tamanho da vida que já passou e da vida que passará.

E, naquele instante, o gosto doce da bebida já não lhe pareceu mais tão amargo...