A abençoada
“Um livro tem a capacidade de dar conforto a uma alma, levar luz a um sorriso, trazer paz a olhares esbranquiçados. Um simples livro, o mais singelo ou o mais terreno que seja, tem a capacidade de abençoar uma alma que não fôra abençoada”.
William GO (inspirado em Clarice Lispector)
Dedico esse pensamento a uma aluna e pessoal muito especial da DM9. Luana, Obrigado por me ensinar muito através de seus textos, dos seus gestos e do seu silêncio.
Era tarde quente e mesmo com calor infernal, sujeitei-me em levar as crianças ao parque. Na verdade fugia do meu editor, que mais uma vez cercava-me e me afrontava com sua mais preferida palavra diabólica: “deadline”. Mas o mais tortuoso e ignorante erro me aconteceu, pior que levar comigo três crianças –uma com gripe - ao parquinho próximo ao inferno de enxofre, por alguns conhecido como: “Baixo Leblon”. Qual erro? Levar meu celular à tira colo. Entretanto que poderia eu fazer? Um filho doente, uma mãe doente e um editor histérico? Foi então que decidi sentar-me e ouvir com carinho ácido o destino que coube ao mundo me dar.
As crianças dispersaram-se em meio à selva infanto-juvenil, nunca imaginei que haveria tantas numa tarde escaldante como aquela. E eu desnuda e evidenciada como um alvo preste a ser atingido por mais um gracejo desse mundo sádico que é o meu. Quando um evento, um simples épico desalento quebra com ríspida doçura a neblina angelical que rodeava minha mente cansada e desesperada. Uma mulher em desesperos conversava com outra. Encostadas num banco, desses escolhidos avidamente por uma pessoa que deseja fugir do mundo e bem atrás de uma árvore. “Como não vi esse banco antes!?”, me perguntei. Maior que a árvore robusta era a intensa antítese presente na cara crua e sem luz da mulher. Ela gesticulava, sofrida apertava um cigarro. E eu ali, observando e vivendo como minha a vida alheia.
Como uma sombra veio a minha menina do meio. Ao me ver de lábios franzidos e coração apertado, a minha filha me salvou. Sentou-se no meu colo de maneira lânguida e me perguntou qual era a causa da minha dor. Eu lhe respondi que era o meu sofrimento. Num conforto quase desumano, a mulher não tão amiga sinaliza para a outra que se necessário, ligasse para ela, caso algo aconteça e assim ela se foi. Virou-se apalpando algo que logo se transforma em uma agenda. “Essa moça não deve ler, mamãe!”, diz minha grande menina. “Desculpa, sim...”, respondo desorientada. “Porque quando eu caí e me machuquei, você e o papai me levaram para o hospital, e o papai muito nervoso falava que a culpa era sua e do seu livro...”. “Meu amor, mamãe não te entende!”, cortei-a com uma certa revolta interna. “Então, lembro que você tirou um livro, um livro muito bonitinho e começou a ler para mim?”, diz a sábia mexendo em meus cabelos. “A vida íntima de Laura, esse livro? O da Clarice?”, perguntei espantada. “Uhunn”, balbuciou. “Quando a vó Rosa tava muito mal no hospital, lembra mamãe? E você lia para ela um livrinho preto e ela sempre sorria, pedia para você nunca parar...”, dizia enquanto amarrava e desamarrava com delicadeza os laços do vestido. “Sim, era a Bíblia. A vovó era muito religiosa (abracei-a e recostei-a no meu peito) e dizia que essa era sua forma de estar mais próxima de Deus”, de maneira doce e grata eu a explicava. Era a primeira vez no dia em que ouvia palavras doces e amenas. “Assim como o papai abraça e beija a tv quando tem jogo? É a maneira dele de ficar mais próximo do jogador, do gol ou da bola?”, coçava a cabeça confusa e eu ria de prazer. “Vai brincar vai! E obrigada por não me trocar por uma agenda”, respondia sorridente, atenciosa ao mesmo tempo a mandava brincar com seus irmãos.
Na verdade disfarçava o choro, que estava prestes a desaguar das minhas nuvens tempestuosas e negras feitas de pensamentos. Típicas de um dia forte e rascante como aquele. Foi assim que percebo quanto o destino fôra bom comigo. Talvez não seja tão sádico e irônico como sempre me fôra mostrado. Talvez eu não esteja tão necessitada de um banco pequeno atrás de uma árvore para me esconder. Talvez não precise de muros ou mesmo tratar das enfermidades dos outros para não ver as minhas. Talvez por não ver essas enfermidades, eu não consiga dar ao mundo a cura que o mesmo merece. Quantas pessoas se escondem atrás de suas árvores ou editores diariamente? Talvez esse seja meu “deadline”, meu prazo para mudar. Foi assim que decidi seguir em frente e salvar aquela mulher de maneira justa e divina que antes fui salva.
Essa já estava calma. Olhou-me e através dos seus muros tentava manter em seus olhos a mais falsa dignidade. “Olá, desculpe. Como faz calor, não!?”, comentei tirando da bolsa uma caixa de lenços. “Sim...” me respondeu insegura. “Tome. Sempre os trago comigo. Tanto calor, óculos embaçados. Você sabe”.Sorri com doçura. Travestindo o real intuito para os lenços. “Meus filhos. (mostrou-me) O mais velho tem 7 anos, o outro 3. Você tem filhos?”, perguntou-me ainda com resistência e rebeldia ocular. “Sim. Três. (sorri) Dois meninos e uma menina. Estão brincando no parquinho! Olha lá junto com os seus!”, disse. Enquanto sorríamos e contemplávamos nossas criaturinhas. “Desculpa, mas não pude deixar de ver sua dor, ali do banco onde estava. Você quer falar sobre isso com uma estranha? (risos meus)”. Falei de maneira bordada, sentia sua segurança. “Sabe, estranha. (risos dela) Eu me pergunto se é isso que eu desejava a mim há dez anos. Eu era tão viva, tão feliz. Não me entenda mal, eu sou muito feliz com meu marido e meus filhos (cortou-me defendendo sua alcatéia).
"Mas algo morreu em mim. Como se a vida me tivesse desfeita em partes. Um pouco em levar as crianças à escola, numa outra em tentar manter uma casa, ou quando tenho que ser pai e mãe; meu marido viajava muito. E em muito, muito mais farelos quando vou e volto ao trabalho (risos dela)”. Disse-me, olhando com um olhar amigo. “Eu entendo bem”, ri e olhei para um ponto fixo qualquer. “Minha filha disse que a minha forma única e doce de mostrar carinho, a feição ou mesmo amor humano é ler. Acho que as pessoas têm fé na minha voz, nos meus olhos. Só queria também saber me ver, me ler me ouvir, sabe “, desabafei meio enrubescida”.Sua família deve sentir muito orgulho de você!”, disse segurando minhas mãos e sorrindo como uma irmã.
Meu telefone tocou. E porque o toque do mesmo era terror absoluto que me eriçava a pele? Sim era meu editor e seu inferninho jornalístico. “Desculpa. Meu editor terrorista. Se eu mandasse para ele cada fatura hedionda que eu gasto com remédio contar dor de cabeça...”, sorri reflexiva. “Nossa, você é escritora. Minha mãe também escrevia poemas. Mas assim que eu nasci ela passou a ler toda noite para mim... seus filhos realmente têm sorte... (ela suspirou) eu nunca tive cabeça para ler para os meus. Acho que não ousaria... Nunca seria tão boa quanto ela. Soa ridículo, não?! Eu sei...”, perdia-se em si mesma entre olhares e gestos fracos. “Não, não soa não”, respondi-a com um grande sorriso. “Preciso ir, tenho um editor para enfrentar, casa, crianças com fome e esse calor, Deus...”, sorri e a abracei. “Obrigada. Obrigada por ter me ajudado. Obrigada por suas palavras e obrigado por ter me lido, ouvido e ajudado”.
Eu sorri, mal sabia ela que não foi a única a ser lida. Artista é isso. Ler-se nos outros, ver no próximo aquilo que o espreita, apunhala e também abençoa. Tudo que mata também pode curar. “Ouça, eu achei esse livro sabe. Minha mãe guardava esse livro numa caixinha de madeira. Ela faleceu faz pouco, mas só agora tive a ousadia de abri-la. É um livro da Cecília Meirelles”, tirou o livro da bolsa e me falava com o olhar do mais felizardo arqueólogo, desses que exploraram as pirâmides. “Sua mãe tinha bom gosto para leitura”, respondi. “Pois bem, eu queria mais um último favor seu, você poderia lê-lo para mim? Percebi que sua vida é muito corrida, como é bravo o seu editor! (risos dela) Mas leria ao menos o prefácio para mim? Gostaria que a senhora me abençoasse também, assim como é abençoada”.
E claro que não tive como negar tal apelo. Confesso que meu ego também não. Desliguei meu celular, chamamos nossos filhos e comecei a leitura não do prefácio, sim de um conto; Liberdade. E naquele momento não era uma escritora neurótica. Alagava meu mundo o sonho, a fé. Sobretudo a paciência e a neutralidade que tanto escrevia, adjetivava, pregava em meus textos. E de maneira mais exótica me senti livre, criatura de mim mesma, sem pensamentos excusos e idéias conflitantes. Era somente eu em mim mesma. (Naquela hora ao menos).
WilliamGO