A LÁPIDE DO SEU ZÉ

Factorum claritas fortes animus secundus famae sina ville fine cursus modicae opes bene partae innocenter amplificatae semper habita numera Dei sunt extra invidiae injurias positae aeternum ornamento et exemplo apud suos futura”. *
                                                                                     Sêneca

Durante toda vida o Seu Zé foi um sujeito de conduta exemplar. Começou a trabalhar aos treze anos de idade, vendeu doces no subúrbio da Central do Brasil, engraxou sapatos na estação Rodoviária, vendeu carnês do Baú da Felicidade, foi comerciante, operário de fábrica e um monte de coisas mais. Depois estudou, construiu uma grande e próspera empresa, constituiu uma bela família, criou cinco robustos e bonitos filhos, agora todos já adultos, casados e bem encaminhados na vida.
Seu Zé sempre acreditou na bondade humana e desde cedo engajou-se em trabalhos comunitários. Contribuiu para entidades filantrópicas, participou de clubes de serviços, trabalhou como voluntário em várias Organizações não Governamentais. Fez o que pode e o que não pode para minorar os sofrimentos alheios. Trabalhou para o Banco de Olhos, contribuiu para a Santa Casa da cidade, ajudou a APAE, o Grupo de Combate ao Câncer, foi leão e rotariano etc. Nunca negou nada para ninguém. A Câmara Municipal lhe deu um título de Honra ao Mérito, vários prefeitos o homenagearam, em todo lugar era recebido com respeito e consideração.
Quanto à vida pessoal, Seu Zé sempre teve um lema, que fez questão de passar para seus filhos: seja honesto, seja leal, seja caridoso e tolerante com as pessoas. Não as critique nem as julgue. Cultive os amigos e ajude a família. Nada é tão importante quanto a família.
Por conta dessa bondade inata e da conduta ilibada e verdadeiramente louvável que manteve a vida inteira, Seu Zé sempre foi admirado por todos. Amado por sua família, admirado pelos amigos, badalado pelos políticos, procurado por todo mundo para dar conselhos e palestras, ele tinha uma vida social intensa e gostava verdadeiramente dela.

Aos setenta e cinco anos de idade, depois de um casamento de mais de cinquenta anos, Seu Zé ficou viúvo. Todos seus filhos estavam casados e bem de vida, graças à educação e ao suporte financeiro e profissional que ele sempre lhes deu.
Sentindo-se ainda com muito vigor e vontade de viver, ele arrumou uma namorada. Era uma moça de cerca de trinta e poucos anos de idade. Seu Zé foi ao médico, fez check-up, tomou Viagra e se sentia muito feliz com seu novo romance, mas a sua família não.
Seus filhos não lhe poupavam críticas e gozações. “ Velho idiota, velho safado, velho assanhado, etc. ”, foram os qualificativos que passaram a ser usados no lugar de “querido”, paizão”, “amigão”, “gente boa”, e outros., que antes eram usados por eles.
A moça também não foi poupada. Foi chamada de "piranha", "oportunista", "aproveitadora", e coisas tais.
Curiosamente, os amigos, que antes o admiravam tanto, também deixaram de procurá-lo com frequência, como faziam antes. Agora, quando o faziam, era para fazer comentários jocosos e contar piadinhas sobre coroas que se envolvem com mulheres mais jovens e perdem tudo o que possuiam.
Todavia, as pessoas que ele ajudava nunca deixaram de procurá-lo para receber o que ele lhes dava, mas depois de embolsarem as contribuições, sempre saiam com um sorrisinho meio sarcástico e aquele ar zombeteiro de quem pensava: "esse é o coroa que está “pegando” aquela mulher novinha."

Seu Zé viveu uns cinco anos nessa vida. Morreu com oitenta anos, e segundo ele, muito feliz com a sua namorada de trinta e poucos. Mas passou os últimos cinco anos da sua vida, muito amargurado com o comportamento da família e com os amigos, que esqueceram tudo o que ele fez por eles.
Poucos dias antes de morrer, Seu Zé, ainda bem lúcido, mas consciente que a morte viria buscá-lo em breve, chamou um entalhador de pedras e encomendou uma lápide para o seu túmulo. Nela mandou escrever o seguinte epitáfio:

“ AQUI JAZ JOSÉ .......; HOMEM SÉRIO, BOM PAI, BOM MARIDO,
ENQUANTO VIVEU FEZ TUDO PARA SER CONSIDERADO,
COM O BEM DOS OUTROS SEMPRE ESTEVE COMPROMETIDO,
MAS HOJE ESTÁ TÃO MORTO COMO SEMPRE ESTEVE ERRADO.”
                                                                  ***
Escrevi esse conto inspirado em uma lápide que eu vi num cemitério do interior do Paraná. Curioso, fui pesquisar o porquê de um epitáfio tão amargo. Então me contaram essa história. Ela fala de um homem que morreu amargurado pela ingratidão das pessoas a quem amava e ele pensava que o amavam.
É uma história banal e não tem nada de extraordinário nela. Aliás, seria extraordinário se acontecesse o contrário. Se todos reconhecessem o direito do Seu Zé de ser feliz e conduzir a sua vida do jeito que ele achasse melhor. Se seus filhos compreendessem que o dinheiro quem ganhou foi o pai e ele e não tinha obrigação de deixá-lo para ninguém. Se os outros indivíduos da idade dele não tivessem tanta inveja da coragem e da disposição que ele mostrou.
É compreensível a amargura dele. Conheço muitas pessoas que devem estar sentindo a mesma coisa neste momento. Ingratidão é ferida que dói muito. Eu mesmo já passei por experiência semelhante e quase perdi a minha confiança na humanidade. Cheguei a pensar em mandar fazer uma lápide com um epitáfio semelhante ao do Seu Zé. Passei algum tempo imaginando umas frases bem amargas e incisivas para deixar bem claro o meu desgosto com certas pessoas que me magoaram. Mas depois de alguma reflexão, peguei esse sentimento de desconforto e fiz uma reprogramação da informação que nele estava contida.
Seu Zé tinha suas razões para pensar que estava errado ao ser bom e honesto. Não é difícil concordar com ele vendo tantas injustiças ocorrendo no mundo.
Ninguém pode condená-lo por se sentir assim. Mas na verdade quem errou foi ele e não as pessoas que lhe negaram reconhecimento. Pois fazer as coisas certas não comporta nenhum reconhecimento. É obrigação. Como disse Jesus: “Somos servos sem mérito; só fizemos a nossa obrigação, não merecemos nenhum galardão por isso.”
As pessoas são o que são e nós não precisamos nos sentir magoados por elas não se comportarem do jeito que nós gostaríamos que se comportassem. Por isso, depois de reler a história de Jó e aquele verso do Tao te King que diz que os homens são como cães de palha que são consumidos nos festivais de sacrifício, joguei no cesto de lixo as minhas mágoas junto com os papéis onde elas estavam escritas e escrevi uma quadrinha que dizia o seguinte:

Ser honesto e fazer o bem é obrigação
A ninguém isso confere merecimento.
O que importa do mundo a ingratidão
Se Deus nos der o devido reconhecimento?

Afinal de contas, quem precisa de um epitáfio? A vida e as obras que nela fazemos é o mais revelador e contundente memorial que um homem pode escrever. Ninguém pode apagá-lo nem ignorá-lo.
Saber perdoar é muito bom e poder esquecer é melhor ainda. Um coração leve e uma mente vazia de mágoas e desejos insatisfeitos, na hora da morte, são as únicas asas que precisamos para nos levar diretamente para o céu.
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*Os atos ilustres, um coração magnânimo, um nome glorioso que não termine em vergonha; uma modesta riqueza devidamente adquirida, honrosamente aumentada e sempre considerada um dom de Deus, eis o que a injustiça e a inveja não vos podem conceder, e sempre será uma glória e um exemplo para a família.
                                                                                                                            Sêneca
João Anatalino
Enviado por João Anatalino em 15/12/2010
Reeditado em 15/12/2010
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