Escritores Convictos: experiências x contradições
Certa vez, fui convidada a participar de um sarau. Meu primeiro sarau! Nunca estivera em um como ouvinte e, agora, estrearia no seleto grupo de autores convidados.
– Que maravilha! -pensariam muitos poetas.
– Ai, ai, ai... Que * - pensei eu.
Não que a ideia fosse de todo ruim, mas ninguém se torna escritor à toa – escritores convictos são, por natureza, seres reclusos, avessos a exposições públicas, de corpo presente, de sua figura. Ainda mais quando se trata de um encontro literário. A poesia existe para expressar aquilo que o cotidiano sufoca. É algo que se faz na mais completa intimidade, mantendo autor e leitor preservados do constrangimento que é submeter-se a deflagração de expectativas e reações autênticas. Ninguém escreve e publica algo sabendo que é ruim, mas nunca se pode prever, evitar e tampouco ignorar uma espontânea e reveladora reação alheia.
Ah, o imprevisível... Não há nada mais excitante e, ao menos tempo apavorante, que o imprevisível.
Ainda assim, na contramão da essência do poeta, fomentadores, entusiastas e exibicionistas teimam em organizar saraus e mais saraus, mesas redondas e leituras públicas, eventos repletos de poetas de gaveta, que nela guardam o sonho de ser o próximo Drummond, Quintana, Pessoa... Desconhecendo ou simplesmente ignorando o fato de que todos estes tinham em comum, além da escrita, a aversão a tais situações pomposas – o que alguns preferem chamar, educadamente, de timidez.
Pois bem, eis que, há pouco algum tempo atrás, fui convidada para um sarau. E, contrariando toda a filosofia barata dos parágrafos anteriores, me agradei da ideia! Seja por vaidade, por curiosidade ou pela fidelidade a uma velha mania de contrariar a mim mesma para, assim, ganhar a liberdade de contrariar os outros com mais autoridade – conhecimento de causa!
Aceitei de imediato, sem pestanejar nem enxergar infinitos empecilhos, como havia feito em oportunidades anteriores. Passei então à tarefa, aparentemente fácil, de escolher três, dentre os zilhões de poemas por mim escritos, para a leitura pública. Fácil? O escambau! Descobri que fui uma poeta muito pior do que julgava minha memória – ler poemas meus antigos é sempre desagradável... Quando já não se leva consigo o mesmo sentimento, já nem se é mais aquele, deveria ser bom... Deveria ser como ler poemas alheios, mas não é. O pior é pensar que o mesmo acontecerá com os poemas de hoje, daqui a meia dúzia de anos... A vontade que tive foi de deletar metade do meu acervo e reescrever a outra metade, mas, uma vez publicados, lidos e propagados, o mal está feito. E agora me pediam para assumir publicamente a autoria do crime e, com a maior cara de tacho, ainda reconstituir a cena – ao vivo – submetendo-me à recriminação, ou duvidosa aprovação, do olhar fruidor. Ai, ai, ai... Que grande *!
Decidi assumir os poemas eleitos como se fossem filhos, cujos defeitos também eram meus. Inflei o peito de ar, e um pouco de orgulho, e fui – ao martírio pessoal que é driblar a “timidez” que me faz poeta. Por sorte minha ou azar alheio, descobri não ser a única virgem naquela fila de estreia: outros dois poetas que, comigo, ocupariam a mesa do sarau, o fariam também pela primeira vez. Seríamos quatro, mas a terceira nem sequer compareceu: atitude deveras compreensível – lembro de ter agido de forma semelhante, duas ou três vezes, quando virgem ante “àquela outra estreia”, mas isso foi há muito tempo atrás... – voltemos ao sarau. Lembro que, naquele momento, me ocorreu a seguinte dúvida:
– Por que será que sofrer em grupo é sempre mais reconfortante? Tudo é melhor quando acompanhado: o sorriso é mais feliz, o vinho tem mais sabor, o prazer é mais intenso, assim como é a dor. O ser humano é mesmo fiel a sua natureza gregária! Então, pra que diabos serve a timidez, a não ser para privar-nos da experiência coletiva que nos faz humanos?
E lá estava eu, reunida em alegre bando com um punhado de poetas e entusiastas, finalmente humanizada! Levava nas mãos uma pilha de oito ou dez poemas – é sempre prudente manter uma carta na manga esquerda – de onde deveria sortear três, de última hora, para ler e, se possível, interpretar com alguma emoção... Ah, emoção... Guardava tanta que já a sentia pesar, e talvez exatamente por isso, limitei-me a ler, lutando para fazê-lo de forma um pouco melhor do que faria uma menina com a redação de férias, perante a classe da primeira série, afinal, só a experiência otimiza a performance.
E não é que saí de lá ansiosa para repetir a dose? Nos dias que se seguiram, levei comigo aquela sensação vibrante, revivendo cada momento em meu pensar, até que o tempo veio e, pouco a pouco, dissipou aquela sensação embriagante, deixando apenas a ressaca, e uma fotografia estampada num local de destaque em minha estante de memórias. Voltei então a ocupar o recluso e sossegado assento que cabe ao poeta – longe, muito longe das luzes do palco. O meu, fica ao lado de uma janela por onde contemplo a vida e, de forma segura e pretensiosa, reflito sobre ela.
Vez ou outra, um telefone toca, içando-me ao mundo que pulsa do lado de fora. Na última chamada atendida, um convite para a TV - a mais colorida de todas as janelas. Confesso que, num primeiro momento, a ideia de converter aquela literatura que chamo de minha para uma linguagem que me é totalmente estranha, não foi exatamente fascinante... Longe disso! Principalmente relacionando-se ao trabalho que foco sobre o “ser mulher” – quando escrevo, posso fazê-lo de pijamas, cabelo por pentear, sapatos a calçar e, ainda assim, falar de beleza e autoestima em linhas cheias de autoridade! Vantagens da profissão. Mas, fazer isso, literalmente, de corpo e alma, requer uma autenticidade e tanto! E só para contrariar-me novamente eu aceito:
– Obrigada pelo convite! Nos vemos em breve!
*Caro leitor, entenda o * presente neste texto como aquela expressão, nada bonita, que costuma pular de sua boca quando algo, inesperado e assustador, perturba a santidade de sua rotina.