Uma Conquista

Muito embora um fato deveras decepcionante que recém acontecera comigo e que narrei em outra história houvera-me distanciado da minha janela por muitos e muitos dias, aqui mais uma vez me encontro na agradável contemplação da visão ampla e interessante deste ponto da Lapa. Acabei por não resistir. O fato realmente deixara-me traumatizado, mas com o passar dos dias fui procurando esquecer e entender que a solidão de um quarto para solteiro e a falta de companhia são piores do que um constrangimento passageiro. Afinal, ficou para trás e quando penso nele já consigo achar graça como as pessoas que o presenciaram. Foi mesmo cômico e inusitado. Mas, deixe-me contar o que aconteceu desta vez.

Realmente, a bisbilhotice não deixa de ser um pecado, e grave, até. Embora não seja um dos pecados capitais, está, por certo, contido neles, porque pode levar o curioso a cometê-lo; digo, a cobiça, de cuja tentação é difícil escapar. Mas, é a velha história: é muito melhor ficar de fora de um escândalo sexual do que sair dele. Minha curiosidade não chegou a tal ponto e acho que a sorte me ajudou.

A visão que se tem de uma janela vai ser sempre limitada; o que podemos fazer é procurar ampliá-la pela imaginação. É claro, tirando as paisagens fixas, são as pessoas que vão fazer a diferença no deleite do apreciador e este vem pela criatividade delas, no modo de vestir, no caminhar e em tantos outros detalhes do comportamento humano. Porém, eu queria mais do que isto. Por ser também um ser humano, possuo igualmente criatividade e me utilizei desta para sair um pouco da minha rotina. Dei a ela um nome simples, fácil e eficaz: chamei-a binóculos.

Interessante como os binóculos tornaram-se preciosíssimos na sua utilidade e ao mesmo tempo parecem não ter utilidade alguma. A não ser quando se vai para uma corrida de cavalos ou Fórmula 1, ninguém, ao ter acabado de sair de casa, se pergunta, ao chegar à rua: “Puxa vida! E agora, como vai ser o meu dia? Esqueci os binóculos”. Experimente fazer isso com o celular. A pergunta terá outro teor antes mesmo de se abrir a porta: “Será que não estou esquecendo o celular?”

Olhemos as lojas. Experimente convidar a sua esposa ou namorada para da uma voltinha no Shopping Center a fim de conhecer os últimos binóculos da moda; no mínimo, rirá da sua cara ou vai chamar você de velho. Agora, fique seis meses sem trocar o aparelho celular dela ou um domingo que seja sem lhe mostrar no jornal, ou no Shop Time os últimos modelos de Web Can; é divórcio na certa. Aceite um conselho de amigo: se você quer andar por aí com alguma coisa pendurada no pescoço; pendure o que quiser: um pendrive, um apito ou mesmo uma vuvuzela, mas, pelo amor de Deus, nunca pendure um par de binóculos, não há nada mais antiquado do que isso.

Então, depois de muto procurar, encontrei um que muito me agradou; trouxe-o para casa; escondidinho na pasta, logicamente. Não há janela no Rio de Janeiro, nos dias de hoje, que não descortine, de meio ou de permeio às outras paisagens, uma infinidade de prédios. Não há muito para se apreciar num prédio além de janelas, colunas e uma porção de antenas, quando não, um entra e sai que pode ou não se tornar interessante. Mas, para quem, como eu, possui um par de binóculos, a coisa muda de figura. O exterior do prédio deixa de existir, pois possuo outras fronteiras por desvendar. Passeando os binóculos detive-me numa que me chamou a atenção. Às vezes me considero uma exceção ao ver que, diferentemente da minha janela e de outras a se contar nos dedos, quase todas permanecem fechadas grande parte do dia; fico analisando a razão disso. Será que temem uma bala perdida? Ou seria a precaução contra a investida surpresa de algum homem aranha?

Mas, não perdi muito tempo com essas questões de fobia ou segurança. Não nego que senti uma pontinha de inveja do homem aranha, mas me contive com o meu passatempo, muito menos arriscado e inofensivo. Como dizia, a que chamou a atenção foi uma, melhor dizendo, duas janelas que viviam abertas alternadamente quase que o tempo inteiro; não me lembro de ter encontrado as duas fechadas ao mesmo tempo. Logo após a minha primeira análise atenta e paciente, através de uma delas, onde era o quarto, por sinal muito novo e belamente decorado, surgiu o que eu esperava: uma mulher. Ajeitei a lente para ver melhor enquanto ela procurava alguma coisa no guarda roupa.

Só consegui uma boa visão no momento em que ela, fechando a porta do móvel, adiantou-se para o meio do quarto. Usava um vestido vermelho de alças e vi como era bonita. Jogou sobre a cama a peça que acabara de apanhar; então adivinhei o passo seguinte. Enrolou os longos cabelos pretos, prendendo-os numa espécie de coque, abaixou-se e trouxe algo que notei ser uma espécie de touca. “Vai para o banho” pensei. E parece que acertei. Virou-se e caminhou para outro cômodo, sumindo da minha vista.

Continuei com o meu brinquedo sem encontrar, no entanto, o que me valesse a atenção. O que poderia ser mais interessante do que uma linda mulher voltando do banho? Ao focalizar novamente ali as minhas lentes, engoli em seco ao ver, não a mulher, mas um homem. Não o vira entrar, então entendi: ali estava o tempo todo, na cama, fora da minha visão. Ela retorna, já com os cabelos soltos e uma toalha a lhe envolver o corpo moreno e ainda um tanto molhado; o homem a toma nos braços e inicia-se uma sessão de beijos e afagos. Não sei se quero continuar ali, testemunha a distância de uma cena amorosa. Quisera tê-la em meus braços, mas não é minha; então que se dêem e se amem à vontade. Felizmente, diria eu, caíram na cama e se ocultaram totalmente. A cena se repetiria e eu poderia dela participar quantas vezes me desse vontade, mas fui perdendo o entusiasmo, até me desfiz do par de binóculos; chega de experiências frustrantes.

Por morarmos próximos um do outro, cruzávamos-nos com frequência; no supermercado, às vezes no banco ou mesmo na rua, mas não ousava abordá-la e nem pretendia, nunca foi minha intenção envolver-me com mulheres compromissadas. Mas, um dia a vi bem distante dali. A Barra da Tijuca é um lugar do Rio que me agrada, não para viver, mas para se divertir, pois são muitas as opções e a praia da Barra me agrada, especialmente. Como sou eu que faço os meus horários de trabalho, tenho o privilégio de escolher um dia de semana para não trabalhar e fazer, assim, do domingo um dia útil. Foi o que fiz: estacionei o carro próximo a um quiosque e me dispus a passar algumas horas descontraídas a ler na areia, debaixo de um sol fraco, ao lado de pouquíssimos banhistas, do jeito que eu gosto. Entretido pela leitura sou interrompido por uma voz meiga e educada.

- O cavalheiro pode me emprestar o isqueiro?

Acho que, em vez de ter sido assustado por ela, eu é que devo tê-la assustado dada a forma com que deixei cair o livro sobre o peito e à minha palidez repentina. Diante de mim, ainda mais linda em trajes de banho, estava aquela que tantas vezes contemplei na intimidade; sua beleza de perto impressionou-me ainda mais.

- Está tudo bem? Só queria acender o meu cigarro - dei-lhe o isqueiro e perguntei, já refeito:

- Não nos conhecemos de algum lugar?

- Não creio. Mas, o mundo é tão pequeno, quem sabe?

Senti, por seu modo de falar, e de sorrir, que simpatizara comigo. Quem sabe o isqueiro não tenha sido um motivo para a aproximação? Mas, sendo ela comprometida, não queria levar adiante o que poderia ser um conquista, mesmo que por parte dela; então procurei agir naturalmente.

- Exatamente por isso, moramos na mesma rua da Lapa.

- Não, não. Moro aqui mesmo na Barra.

- Então deve ter parentes na Lapa.

- Ah! Isto sim.

- E deve ter passado lá as últimas semanas.

- Até gostaria. Há meses que não os visito. Moro com mamãe; estou trabalhando muito ultimamente além de estar em ano de formatura.

Minha palidez deve ter retornado a essa altura; ela continuava sorrindo. Mas, acho que se fosse uma cantada não precisaria usar dessa artimanha. “Certamente quer trair o marido comigo. Mas, para que mentir se sou seu vizinho?” pensei, embasbacado. Vendo minha cara de pateta, ela me explicou:

- Já sei do que está falando. Tenho uma irmã na rua Mem de Sá, uma irmã gêmea. Carina é casada e já mora para lá há quatro anos com o marido e um filho.

Então era isso. Mas, eu precisava de provas; e as tive porque Ellen gostara realmente de mim e eu dela. Assim, arranjei uma namorada e uma simpática cunhada que nunca ficará sabendo do meu segredo. Ainda bem que binóculos não falam.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 07/12/2010
Reeditado em 07/12/2010
Código do texto: T2658613