Herança
Mariinha ganhou um par de brincos de água marinha quando completou 15 anos. Desde então, o acessório fez parte de sua longa existência.
A delicada peça, uma pedra de límpido azul num engaste de prata artisticamente trabalhado, foi presente que o pai lhe deu pelo rito de passagem, num tempo em que o acessório era usado exclusivamente pelas representantes do sexo frágil. Não havia as modernidades de hoje.
O brinco foi testemunha de sua vida. Em vários momentos – se não em todos – esteve presente: foi assim quando se formou no Curso Normal. Depois, quando concluiu a Universidade de Geografia. Ela o usava quando foi ao enterro do irmão, morto de repente num acidente na Dutra. Depois, no falecimento dos pais. Sempre em alguma data especial, estava lá o penduricalho sendo usado por ela.
O brinco foi presença também em várias fases de sua vida, desde mocinha até hoje, quando ela se olha no espelho e não reconhece aquela senhora enrugada que já não traz nos olhos o brilho de outrora.
Ah… o brinco de pedra azul combinava tantos com seus olhos verdes! Os rapazes diziam que pareciam duas esmeraldas. A pedra mais preciosa, a mais pura que a natureza foi capaz de criar! Agora são duas gemas opacas que ela só enxerga colocando os óculos. A vida é assim e ela já se conformou.
Quer dizer, nem sempre. Há momentos em que Mariinha olha para os brincos e também para sua existência e vê o que foi capaz de fazer, ou melhor, o que não fez. Sente raiva. Sente ressentimento, e ressentir é sentir novamente, numa dor eterna. Se houvesse um Deus lá em cima não deixaria que todos fossem embora para bem longe.
Muito longe. Mas aí o momento passa, é apenas um instante de rebeldia.
Normalmente, depois do acesso de raiva e ressentimento, vem uma grande tristeza.
Sim, tristeza por não ter para quem deixar os brincos, os lindos brincos que a acompanharam e que poderiam se eternizar nas orelhas de outrem.
Uma neta, quem sabe até uma bisneta, talvez? Mas a vida não lhe agraciou com descendentes. Foi estéril de emoções.