O Crack Não Espera
Ela estava sentada ali naquele jardim tão florido, com flores
multicores.
Mas ela só conseguia ver tudo em preto e branco, tudo tão
sem cor alguma.
Desde que chegou, fala sozinha sempre a mesma coisa:
- Não quero ficar aqui, quero voltar pros meus amigos. Aqui
só tem gente chata.
Hoje é o primeiro dia de sol que lhe foi permitido, desde a
internação para desintoxicação química.
A família a encontrou no Beco do Papagaio vivendo na
mendicância, prostituindo-se e sendo aviãozinho.
Verônica é a filha caçula de um juiz trabalhista, viúvo que
educou os quatro filhos com a ajuda de empregadas. Nunca quis casar
novamente.
A esposa morreu no parto de Verônica, e de uma forma muito
velada mesmo ele não verbalizando, deixava transparecer que a culpa
da perda da esposa deveu-se à última gravidez.
Verônica cresceu com essa culpa; em razão disto, sempre foi
uma criança dada ao isolamento e um pouco agressiva. A infância
transcorreu igual à de qualquer menina da classe média, boas escolas,
aulas de balé, passeios com o pai e os irmãos.
Agora, ela estava ali hospitalizada por ser usuária de crack.
Estar naquele jardim era um grande passo. Nos primeiro dias,
ao sair da ala de observação, quebrara tudo que ia encontrando pela
frente. As consultas psicoterápicas, os tranquilizantes e os psicotrópicos
são a terapia que está recebendo. Mas ela continua repetindo:
- Quero vazar daquiiiiiiiii.
Em alguns momentos, ela relembra a vida que levou nos
últimos oito anos.
Na festa da amiga Carol, conheceu Otavinho, um verdadeiro
gato sarado, com ele deixou de ser BV (boca virgem). O medo da
transa a fez aceitar o primeiro baseado, para relaxar e sentir o prazer
da primeira curtição.
No correr dos meses, e depois dos anos, o namoro rolou
solto movido a outras drogas e a bebidas.
Lembra bem do dia em que ganhou do namorado o cachimbo
e algumas pedras, naquela noite teve a certeza do que já desconfiava: o
Otavinho era traficante. Mesmo vivendo juntos na maior parte do tempo,
ele a fazia pagar pelas pedras, persuadindo Verônica a sair com os
compradores preferenciais.
O pai havia cortado a mesada já algum tempo em razão de
ter abandonado o cursinho na véspera do vestibular. E a colocou para
fora de casa quando a irmã a denunciou contando que ela estava
pegando dinheiro da carteira dos irmãos e que havia vendido o
próprio “notebook” o anel ganho dos avós aos quinze anos e a caixinha
de música que havia sido da mãe para manter o vício e não precisar por
algum tempo se prostituir. Em alguns momentos, sentia náuseas ao
estar com os clientes, mas pelas pedrinhas submetia-se, negociava e
era lucrativo.
Lembra dos momentos alegres junto do pai e dos irmãos, as
festas de Natal e de seu aniversário de seis anos, quando ganhou de presente o Sedex: o cachorrinho chegou dentro de uma caixa sedex
aberta, com um laço verde no pescoço. Tudo havia sido combinado, dos
tios, amigos e colegas ganhara cama, roupas e pequenos brinquedos
que fizeram com que o pequeno “beagle” ficasse “fashion”. Agora faz
tanto tempo que não o vê, sente saudades.
- Verônica, vamos entrar, o jantar será servido e precisas
tomar a medicação. Mais tarde, às 20 horas, terás terapia grupal
- Estou cansada, prefiro dormir.
- Tens que ir à terapia, falar e ouvir os outros pacientes
contribui para uma atitude positiva perante a dependência química de
vocês.
- Amanhã pela manhã inicio as aulas de vôlei, e à tarde
começo a trabalhar na biblioteca, não estou nem um pouco afim, prefiro
ficar no quarto.
- Vais ir, a rotina aqui é ter multiatividades, ocupar o tempo
ocioso é terapêutico e contribui para evitar recaídas.
Verônica conclui que na primeira oportunidade fugirá.
A comida é ótima, a cama é limpa e até ganhou roupas novas
da família, ficar livre daqueles trapos foi uma boa.
Há quanto tempo não tomava um banho de chuveiro quente e
usava sabonete e xampu.
Já faz dois meses que está ali seguindo a rotina da clínica.
Quando se olha no espelho,vê que as olheiras desapareceram e os cabelos estão brilhantes.
Sorri.
- Verônica, dentro de um mês estarás recebendo a visita da
tua família.
- Minha irmã prometeu que trará o Sedex, meu pai e meu
irmão também virão.
- Estás de aniversário amanhã.
- Não quero comemorações.
- Aqui todos ganham uma festinha, não sejas do contra.
- Luana, no ano passado o pessoal do beco comprou uma
Nega Maluca e festejamos o meu aniversário.
- Então, amanhã, comemoras conosco.
À noite Verônica planeja a fuga da clínica, será ao anoitecer
durante a festa de aniversário, enquanto todos estarão distraídos.
Ela sabe que está com apenas cinquenta reais, venderá um
dos tênis ao Veredinha.
E irá para a travessa da igreja, lá encontrará alguns parceiros
e ninguém a levará de volta à clínica, não vão encontrá-la fácil.
Demora a dormir, está ansiosa por voltar a ver o brilho das
pedras.
Amanhece, o dia transcorre e chega a hora da festa, todos
estão se divertindo...
A noite cai, Verônica pula o muro e corre até a estrada,
consegue uma carona.
Não vende só o tênis, a jaqueta também. Caminha até a
estação do metrô, logo estará com a turma e as mãos tremem só em
pensar em tocar as pedras.
A família - e aplacar a saudade do Sedex- ficará quem sabe para algum dia.