Procurando sinal.

Chovia muito, lá para os lados dele. E isso vinha ocorrendo há dias. Chuva violenta mesmo, cheia de vento, chegando a entrar pelas frestas de algumas telhas, até atingir parte do forro do teto da sala, gotejando um pingo ou outro, de vez em quando, pela lâmpada fluorescente do lustre, bem acima do sofá. Sentado nele e assistindo tv a cabo, ficou olhando como bobo aquela tarja na tela, "procurando sinal", que sempre vinha um pouco antes do início de cada temporal. Mas esse "como bobo", que uso nesse relato, é mais uma espécie de força de expressão de quem descreve a cena olhando de fora. Bobo ele não é e acho que nunca foi. Era comum, e creio que ainda seja, ele fixar o olhar numa coisa qualquer e deixar que ela lhe hipnotisasse. Era assim que ele começava suas divagações. Embora o temporal batesse com força na janela, ele gostava daquilo. Parecia trazer um pouco de perigo excitante aos seus últimos dias, mornos demais pro seu gosto. A falta da televisão também o estimulava a buscar outros sinais. Um livro da estante, talvez. Pegou um Scott Fitzgerald, "Suave é a Noite". Sempre o teve e nunca o leu. Vai ver a hora era aquela, pois adorava contrastes. E ler sobre uma noite suave, numa noite daquelas, sem dúvida, era um contraste. “Os Alpes purpúreos que confinavam com a Itália, tudo isso se refletia no mar, tremulando nas ondulações e circulos feitos pelas algas marinhas, através das águas límpidas e rasas”. Confinar era o tipo de coisa que não lhe agradava, mas círculos de algas marinhas em águas límpidas e rasas, sim, disso ele gostava, contrastes. Eles facilitavam a sua escolha pelas águas límpidas e rasas, fáceis de entender, ausentes de algas marinhas, que as turvam. Continuou procurando outros sinais, já que Fitzgerald pareceu estar fadado a mais algum tempo na estante, sem ser lido. Por algum motivo estranho, lembrou de seu ateísmo convicto, e mandou Deus às favas, se rindo de quem O procura no maiúsculo, com pedidos tão minúsculos, como o do goleiro, na hora do penalti, ao fazer o seu sinal da cruz para, depois da partida, voltar a sua vida de pecados rotineiros. Anjos? Ora, recentemente deixou-se seduzir por um. Estava com a guarda baixa. Foi coisa de momento, afinal, ninguém é perfeito, muito menos aqueles que, como ele, não gostam de ser. Este foi mais um daqueles matos, que ele permitiu em seu quintal. Permitiu, pois não os via assim, mas depois voltou a si. Ficou assustado com uma sensação estranha de que duas gotas de sangue estavam escorrendo pelas suas pernas, assim, de repente, do nada. Baixou os olhos pra ver. Era a água, que se aquecia na lâmpada do lustre do teto, antes de cair sobre ele. Sentiu-se como ela, a lâmpada, meticulosamente aquecendo cada gota que nela ficasse pendurada o tempo suficiente pra isso, até que, talvez, lembrasse sangue, um sangue de calor limpo e honesto, sem dissimulações ou rabos presos com regras burguesas, pré-fabricadas na hipocrisia de seus valores. Trocou o “procurando sinal”, da tarja da tv, por um bom filme, que já havia visto, mas valia a pena ver de novo. “Erin Brockovich”, só pra lembrar daquilo que ele mais gostava, o se por na pele dos outros sem melindres ou truques , de modo consistente e concreto, humana e socialmente palpável, ao invés de se iludir, achando que pagar um frango assado a uma menina pobre, que o pedisse, na fila da padaria de um desses finais de semana, bastaria como resposta ao encantamento pelo seu bonito laço de fita rosa no cabelo. Será que ela, com dois bonitos laços de fita , estaria propensa a ganhar dois frangos? De quantos laços ela precisaria para não estar mais ali, na fila da padaria,pedindo? Em que direção ele poderia e deveria ir, além daquele frango, para, de fato, ajudar a garota? Deletou o assunto e sentiu-se bem, simplesmente por já estar fazendo o que fazia, na sua parte voluntária, a qual sempre buscava sinais que valessem a pena, inspirados na falta daqueles de algumas pessoas, bem como, da sua tv a cabo.