Dona de Casa em Fuga!

Regina Racco
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Mudou tudo. Acordou bem mais tarde, caminhou descalça até a cozinha, abriu a geladeira e pegou uma garrafa de dois litros de coca-cola, abriu e bebeu direto do gargalo. Deixou sem a tampa, sobre a pia. Tomou banho, vestiu-se e ao olhar no espelho, detestou o que viu. Foi para o quarto das filhas que já haviam saído para o trabalho, pegou algumas peças emprestadas, vestiu e gostou do que viu. Colocou algumas peças a mais em uma sacola, voltou para o quarto, escreveu com baton no espelho da penteadeira:

Fui.

E foi mesmo.

Já no ônibus (dinheiro pouco, fugir de avião, nem pensar), relembrou a noite anterior. Mais uma bebedeira do marido, mais uma briga, mais uns tapinhas suportado como sempre em silêncio, no quarto. Imaginem as filhas ouvindo? Os vizinhos! Vergonha...

Pensou no retorno das duas filhas, a comoção. Mãe presente, esposa admirável, casamento (de fachada) exemplar. Ninguém entenderia nada. Ficou triste, pensou em descer do ônibus, abortar a missão. Afinal, quase trinta nos de casamento. É certo que o marido só fez piorar nestes anos, humilhação passando do limite, traições seguidas, já nem disfarçava mais. Tem quase certeza que as filhas sabem de tudo, mas essa intimidade para falar, nunca tivera. Ela era a mãe, ele o pai, elas, as meninas. Manter longe e proteger a privacidade. Aprendeu assim, agiu assim a vida toda.

Cinqüenta e quatro anos e virara uma máquina, lógico que uma máquina perfeitinha, cumprindo religiosamente todas as funções que se espera de uma boa dona de casa.

Parada do ônibus.

Desce correndo para fazer xixi e tomar um café. Repara que uma mulher a olha com certo espanto. Sabe que ainda é bonita, embora esteja um pouco magra, os cabelos ligeiramente grisalhos... Talvez... Talvez não, tem certeza que é a roupa que pegou das meninas. A calça é moderna demais, a blusa, esvoaçante demais... Deu de ombro. Quem se importa? Podem olhar!

Não vai voltar.

Entrará em contato com as meninas. Apenas com elas, nem pensa em se explicar muito. Acha que falou tudo que precisava no recado que deixou escrito com o baton. A escolha da cidade para onde está indo, teve como motivo ser a casa de uma prima amiga. Ela a ajudará. Sabe que precisa de apoio neste começo, mas pensa em ficar pouco tempo, quer ir para a Argentina, morar em Buenos Aires. Desejo antigo, de quando era adolescente e queria ser jornalista. Quer sonhar, precisa sonhar, de preferência com algo que a remeta ao futuro. O presente é tão somente uma estrada que tem como objetivo afastá-la do passado. E o passado, está a menos de três horas de distância.

Quando foi que deixou de ser feliz? Faz tanto tempo... Olhou o relógio: Dez horas. Se em casa, já teria voltado do supermercado e estaria começando a preparar o almoço.

Por volta das treze horas, uma das filhas e o marido chegariam para almoçar. Foi assim durante muitos anos... Subitamente, um pensamento cruza como relâmpago sua mente:

A coca cola esquecida na pia da cozinha, estará imprestável para consumo quando chegarem! Talvez nunca a perdoem por isso!