Mundo Cão
(Todos os nomes são fictícios e qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência)
Tião desceu o morro correndo com aquela agilidade que lhe era peculiar. Nas costas uma mochila. Estava atrasado para o trabalho. O que não era nenhuma novidade, já que estava acontecendo a semana toda.
- Vou ser despedido! Gritava em seu íntimo. O patrão já tinha avisado! Droga! Droga! Falou abertamente para quem quisesse ouvir.
Correndo, passava por becos tão estreitos que por pouco não esbarrava em quem vinha subindo. Portas e janelas abertas anunciavam que os moradores estavam prontos para um novo dia. Crianças brincando com pés descalços ou sandálias de borracha e outras, uniformizadas, saindo pra a escola! Bom dia! Bom dia! Falava com um e com outro.
Já estava chegando à esquina da rua quando viu a condução passar. Lá se ia a última esperança! Tentou sinalizar, mas o motorista não o viu. Arrasado jogou a mochila no chão empoeirado. A infeliz abriu e deixou cair os cadernos, livros e algo mais.
Decepcionado sentou ali mesmo e tentou arrumar tudo de novo.
- Porcaria de mochila! Gritou. Se tivesse dinheiro compraria algo melhor, mas não tinha.
O pouco que ganhou no mercado no mês passado só deu para ajudar em casa e comprar o material de apoio para o cursinho. Coitado! Queria ser alguém. Estava cansado daquele miserê!
Levantou-se do chão e decidiu andar até o ponto seguinte. Quem sabe não conseguiria pegar um transporte alternativo? Seria uma sorte!
Atrás de si, o morro de São José erguia-se imponente. A descida era íngreme, mas asfaltada. Nisso a prefeitura tinha feito um bom trabalho. O subprefeito tinha prometido faz tempo e com o apoio da comunidade, quer dizer, da Associação dos moradores, algumas coisas até que funcionavam bem: A creche, a quadra de esporte, a tal da inclusão digital e outras benfeitorias que calavam a boca do povo. Pelo menos era o que pensava.
Na verdade, Tião tinha os seus sonhos, desde criança! E de vez em quando arriscava escrever alguma coisa. Um dia seria um grande jornalista e trabalharia no Jornal da Cidade. Aí sim, eles teriam o que merecem. Falaria tudo! Sem omitir uma vírgula do que via e ouvia naquele Mundo Cão, que havia se transformado a favela.
Olhou para trás para se assegurar que ele estava lá, o morrão, com suas casas trepadas umas sobre as outras, a vida caminhando lentamente pra uns, pra outros velozes como um carro de corrida! Uns dias mais calmos outros não.
Quando tinha batida, o mundo virava pelo avesso: policiais invadindo casas, gente fugindo, gente morrendo. Gente trabalhadora se escondendo dentro de casa com medo de bala perdida. Infâncias perdidas. Inocência tirada à força pelas drogas, pelas armas, uma luta constante em sobreviver! Coisas que só vivendo lá pra saber! Coisas que os jornais não dizem!
Mas esse tipo de vida Tião não queria não! Seus olhos se fixaram um ponto. No meio desse emaranhado, ficava o casebre verde, no alto do morro, a mãe doente, a irmã metida com a vagabundagem, o pai... Deixa pra lá! Ficava tudo pra trás, a cada manhã quando o jovem se dispunha a buscar um futuro melhor.
Passos apressados o levam mais adiante, a Kombi parada esperava o último passageiro. Graças a Deus! Expressa como se fosse uma oração. Consulta as horas. Vai dar tempo! Que bom!
O mercado abre as oito em ponto, teria tempo de tomar um café. Agora podia se dar ao luxo de sentir o cheiro gostoso daquele líquido quente que descia a garganta. Alguém chega e cumprimenta. Os dois trocam idéias!
- E aí? Pronto pra prova!
- Claro! Estudei até tarde da noite! Quase me atrasei!
- Então a gente se vê mais tarde!
O jovem sorri alheio as dificuldades que o cercam. Está na hora! O trabalho no mercado era um degrau da escada. Mas não ficaria ali pra sempre. O cursinho de segunda a sexta era uma rotina que se repetiria até o final do ano! Terminou os estudos tarde e agora era hora de correr se quisesse alcançar seus objetivos! Tião tinha sonhos!
Mas sábado era dia de balada! Era quando a comunidade se encontrava e se igualava. Musica alta, meninas de saias curtas e batom na boca, muita dança! Se tivesse sorte, rolava até um beijo! Mas lá pelas tantas, uma batida. Correria, gritos, socos, palavrão, choro, sangue, um corpo caído no chão! Mas um adiante! Que deu nessa gente pra invadir o morro assim!
Tião se esgueira pelos cantos. Não tinha nada haver com nada. Estava ali só pra se divertir! Mas que merda! Grita o subconsciente! Está ferido! Ferido na perna e ferido na alma!