VESTIDO PRETO E TEMPESTADES
- Galega, você ta me provocando demais...
- Anhãannn?
- Disse que ta me provocando por demais da conta, uai!
- Ah, não amola.. provocação é tempero, capicce?
Ela sai feito uma flecha e dois copos caem do escorredor indo se espatifar no ladrilho.
"Essa Galega hoje ta meio estranha... vou ter que tomar uma atitude senão..."
- Olha aí, mulé, você vai deixar estes cacos pra enfeite, é?
- Ah, não amola, não enche! Pega a vassoura e a pazinha e limpa tu mesmo, ta bom? Já fiz almoço, lavei a louça e agora vou é tomar um banho e me produzir pra logo mais.
Temporal à vista, nuvens carregadas, ele resolve fazer uma pausa para avaliação. Pra logo mais? Aí tem coisa. Mas não dá pra dar mole pois senão o cara dança, perde o controle da coisa, vira pano de chão torcido e esfregado.
Ouve a moça cantarolando debaixo do chuveiro, um banho que se prolonga por longo tempo e coçando a cabeça resolve buscar a pazinha e a vassoura pra acenar com uma bandeira branca de humildade incomum em criaturas da sua estirpe. Isso vai lhe dar uma certa vantagem, analisa, vai deixá-la surpresa e desmobilizada da campanha agressiva dos últimos dias. Ledo engano.
Porta do banheiro se abrindo, um halo de perfume invadindo tudo, misto de rosas com hortelã na fragrância de xampu , sabonete, hidratante, colônia pós banho, uma farmácia completa exalando um cheiro quase agressivo.
- Cheirosa hein?
- Anhãnn... ah... pode ir ver lá na Dona Dulce se ela já terminou de arrumar o meu vestido preto?
- Aquele???
- Sim, porr.. quê?
- Mas Galeguinha, o vestido preto é...
- É o melhor que tenho! Vai e não fica aí dando palpite em coisa que tu não entende.
-Ah é? Ah é? Então é assim? Eu entendo muito bem do que preciso, ce não pensa que me engana não, este seu pretinho aí é chave de cadeia, e posso saber aonde vai com tal pedaço de pano que chama de vestido?
O céu fica totalmente escuro, negro, uma ventania de sul a norte, de leste a oeste, um furacão, tudo se anunciando naqueles olhos cinzentos.
- Então agora tu é que manda não é, José Amâncio?
- Sim, sou eu que mando, eu sou o homem aqui, sou o chefe da casa... algum problema?
- Ah é? E quem foi que te nomeou assim pra este cargo aí de manda chuva do lar, foi alguma entidade que baixou neste terreiro feito assombração?
E ele, como sempre que se vê um tanto emparedado, vai tornando a sua voz um bocado nasalada, subindo uns dois tons na afinação, destacando bem as sílabas, e ameaça:
- Olhe aqui, Ga-le-ga, ce ta me provocano de- mais... eu vou lhe mostrar com quantos paus se faz uma canoa...
- Ahhh... vai mesmo?! Que é isso, companheiro??!
- Não vem com sarcasmo, ta bem? Sei bem aonde pretende chegar...
- Não pretendo, não! Eu jáaa cheguei! Cadê o homem do socialismo, hein? Isso é bom pra discurso em palanque, porque dentro de casa vira tudo home das caverna!!
- Não força Galega, não mistura as coisa! Ta bom... vamos mudar o rumo desta prosa...??
- Ah, pode ser, mas sabe aquele treco de pau de fazer canoa? Pois eu tenho um, o meu rolo de macarrão, aquele que a tia Teresa me deixou como relíquia de família, lembras?
- Ah, nãao... pára com isso, Galega!!
- Paro não, pois eu tenho também essa madeira de fazer canoa, e eu é que vou te mostrar como, com um só pau, eu te faço ligeirinho esquecer essa mania de macheza, viste?
Muita gritaria, muita adrenalina, chuvas torrenciais espalhando gritos e impropérios pra todo lado. Em seguida, uma cadeira virada , uns me larga, me deixa e enfim as lágrimas da Galega culminando em choro convulso. O aparente pé torcido, ele todo pressuroso a cuidar da moça. Em seguida, muito beijo, muito mimo, ah, meu amor, o céu clareando de vez.
Terminam os dois no maior amasso ali na cozinha mesmo, que toda aquela agitação rendeu sim, foi uma grande intensidade. E nem vestido preto, nem pau de macarrão, cessando tudo que a musa antiga canta... quem manda agora e eles obedecem, rolando pelo piso, é apenas a vontade de amar.