Mariazinha, Dona Maria, Dona Ô
Mariazinha já nasceu mirrada. Pequena, desajeitada, toda problemática.
Levaria como primeiro presente de sua vida o nome de uma amante de seu pai. Nome esse que era abominado pela sua mãe e pelo resto da família, o que levou que a chamassem por toda a vida por um apelido.
Mariazinha crescia, pouco, mas crescia.
E nesse pouco que cresceu, ou quase nada, em meio às fraudas, em meio às bonecas de sabugo de milho, num dia radiante de sol, foi lhe apresentado o fogão da casa.
- Mariazinha, olhe, esse aqui é o fogão que você vai operar daqui para frente.
A menina olhou ressabiada para o equipamento da cozinha, mas era necessária a sua mão-de-obra barata naqueles tempos remotos e de parcos recursos.
Depois de algum tempo de treinamento, Mariazinha assume totalmente o fogão. Cozinhava para duas dezenas de pessoas, quando não para mais do que isso.
Os pais orgulhavam-se da menina prodigiosa que aos nove anos de idade já dava conta de uma cozinha sem a ajuda de ninguém.
Mais tempo se passou, e Mariazinha cresceu ainda mais.
O fogão já havia sido incorporado à sua pequena vida.
Era ela e o fogão, o fogão e ela. Ele era como um prolongamento do seu ser. Tamanha a intimidade que surgiu nesta relação.
Crescida, Mariazinha descobre o príncipe encantado que a resgataria daquele mundo de alhos e bugalhos.
O namoro é bom, o rapaz era bonitão, por que não?
Amaram-se, casaram-se, com direito a véu, grinalda e flor de laranjeira. Tudo certo, como manda a moral e os bons costumes.
Então, Mariazinha, após sua brevíssima lua-de-mel, encontra agora em sua nova casa, aquele seu companheiro inseparável dos tempos de infância e adolescência; ele estava lá num canto estratégico, ele, o fogão.
Agora, Mariazinha já não era mais simplesmente Mariazinha.
Dona Maria agora tinha diversas responsabilidades. O primeiro filho veio logo, com pouco mais de um ano de casamento.
Já não era mais somente o fogão, mas a casa como um todo era atribuição de Dona Maria.
Sempre lavando, passando, cuidando, cozinhando, encerando, Dona Maria vivia seus dias.
Restaurantes por ela nunca foram freqüentados, nem muito menos algum hotel ou qualquer tipo de viagem.
Dona Maria não era recompensada pelo que fazia e de forma alguma reconhecida, pois fazia apenas sua obrigação.
Por que vamos elogiar ou recompensar alguém que faz apenas a sua obrigação?
Mais tempo se passa, o tempo só sabe isso fazer, passar.
E também fazer com que o nosso corpo fique cada vez mais decadente.
Hoje já com quase sessenta anos de idade, uns cinqüenta de cozinha, Dona Maria passou toda sua vida praticamente reclusa, enclausurada nos limites de sua casa.
Não viu cores nem sabores diferentes, era sempre o mesmo arroz e feijão com alguma carne de segunda qualidade. Às vezes achava-se feliz porque tinha comida à mesa. Isso era importante.
O nome pelo qual nunca foi chamada pelos parentes também não era utilizado pelo marido. Este a chamava de Ô.
Ô.
Simples assim.
- Ô, pegue minha camisa. Ô, cadê a comida. Ô, mas que demora!
Certa vez, perguntei a Dona Ô:
- A senhora é feliz?
- Hahahahahahahahahaha!
Foi a resposta que eu recebi.
Mas já sabia que a resposta viria nestes termos.
Até então eu nunca havia reparado, mas a vida de Dona Ô foi uma das mais incipientes e pobres que eu já tinha visto.
Sufocada por uma rotina asfixiante de meio século, precisava tomar psicotrópicos para conseguir viver sem ir à completa loucura.
Em toda sua vida, o fogão foi sempre onipresente.
Ele ainda está lá sob os seus cuidados. Esse companheiro inseparável de meio século.
Olhei para Dona Ô, compadeci-me com seu sofrimento, entendi suas dores e suas enfermidades.
Não brigo mais com você, Dona Ô.
Inquiri a mim mesmo, perguntando se será que um dia ela finalmente escapará dessa cadeia que é sua própria vida?
Respondi que sim, claro que sim.
Com a morte.