Menino de rua
Não sei, Dona. Sempre me perguntam por que eu sou diferente dos meus companheiro da rua. Mas não tem diferença. A gente é igual. Vive no mesmo lugar, faz as mesmas coisa. O pessoal me acha diferente, acho que é porque tenho olho azul.
Não nasci na rua não. A rua me chamou e eu vim. Já tive casa, pai, mãe, gostava de ir no colégio. A gente era pobre, mas não faltava nada. O pai era muito bom, tava sempre comigo, era um amigão. Me ajudava em tudo. Um dia deu lá uma coisa nele, não sei o quê. Ficamo só eu e a mãe. Aí começou a faltar comida, roupa. Mas não foi por isso que eu fugi.
No começo a mãe ficou triste, Dona, chorava muito. Depois ela começou a levar uns amigo pra casa. Disse que era pra ajudar a gente. Alguns eram muito legal, me tratavam bem, traziam presente. Um me levava sempre no futebol. Mas depois veio um que ficou. O tio não gostava de mim e me batia todo o santo dia. A pobreza continuou igual. Uma vez ele queimou a minha mão com um cigarro, pra ver se eu aguentava, se era home de verdade.
A mãe sabia, Dona, mas ela só dizia pra eu não provocar ele. Eu não fazia nada, nem abria a boca e ele sempre tinha motivo pra me bater. Apanhei muito dona e nem sei por quê. Foi por isso que eu fugi. Fugi e fiquei um tempo por perto, esperando que a mãe me achasse e mandasse aquele tio embora. Mas ela não me procurou, então subi num trem e vim pra cá. Me juntei com esta turma e fui ficando.
A gente pede dinheiro na sinaleira, na rua, e dá ele pro tio Chico, que controla e compra as coisa pra nós, quando dá. O resto do tempo a gente brinca nas praça, faz uma pichaçãozinha. Eu leio bastante.
Não é só dinheiro. Quando vejo um jornal ou um livro no banco do carro, eu peço também. As vez eles me dão. O tio da banca, quando não tá azedo, também me dá alguma coisa. Eu junto do chão, do lixo. Sempre tenho o que ler.
Quero sair da rua sim, Dona. Quando ficar um pouco mais velho vou procurar um emprego de verdade e sair desta vida. Conhecendo um pouco as coisa, lendo direito e escrevendo, vai ficá mais fácil. Uma tia, dum carro de luxo, me deu uma vez um caderno grande e um lápis. Eu escrevo nele.
Escrevo tudo que me vai na cabeça. Tudo que eu vejo na rua, as história triste e as engraçada, que também tem. A gente passa necessidade, mas se diverte.
Pro abrigo só vou quando tá muito frio e não dá pra aguentá na rua. O lugar é bom, o pessoal lá é muito legal, mas tem muito não pode. Depois a gente tem que sair cedo pra rua de novo, não adianta muito. Na rua a gente passa trabalho, mas é mais livre, faz o que dá na telha.
A gente dorme onde dá, Dona. Quando encontramo um lugar bom vamo ficando. Geralmente alguém da vizinhança bota a gente pra correr. Daí procuramo outro lugar, mas ficamo sempre junto e com o tio Chico. Ele disse que junto a gente corre menos perigo. Agora somos em quatro, mas já teve outros. Uns mudam de rumo e a gente não vê mais. É que o tio Chico controla e tem os que não gosta.
Droga não. Não mexo com estas coisa. Meu pai me ensinou a não chegar perto de traficante. Nenhum dos guri do tio Chico usa droga, ele não deixa. Se algum enveredar, perde a proteção. Ele cuida da gente, lá do jeito dele. Também não usa droga, mas bebe um bocado. Quando ele tá são é muito bom, mas quando tá bebo a gente fica meio de longe. Mas, se não fosse ele, a vida nossa seria bem pior. A gente gosta dele. Não sabemos por que ele foi pra rua, nunca conta, nem fala deste assunto. Achamo que foi por causa da bebida. Ele tem uma fotografia todo amassada de uma menina, deve ser filha dele, mas a gente não sabe direito.
Tenho saudade de casa sim, Dona, e da mãe também. Mas que posso fazer se ela não me quis? Se um dia eu sair desta vida vou procurar ela e ajudar, se ela precisar. Mas agora não tenho nada, vou levando.
A vida não é fácil não. Quando a gente fica doente, um cuida do outro, quando um apanha na rua a gente mesmo cuida das ferida. Tem quem nos trata mal, sem motivo, só porque tamo na rua. Será que eles acham que a gente gosta? Nunca vem ninguém aqui oferecer outra vida pra gente. Só sopinha, agasalho e cama pra uma noite. É bom, mas não adianta. A gente precisa é de um lar pra dormir todo o dia e isto ninguém quis me dar... nem a mãe. Só o pai que cuidava de mim de verdade. Agora eu mesmo tenho que me virar.
Tô indo, Dona, tenho que ganhar algum na sinaleira, que não fiz nada inda hoje. Depois vou ler meu livro novo e começar a escrever neste caderno, mas não vou jogar fora o velho. Não quero perder tanta história. Quem sabe um dia alguém se interessa em ler? Adeusinho, Dona, e obrigado.
(Conto publicado no livro Nem todas as palavras; organizador Caio Riter;Nova Prova;Porto Alegre;2010)