Luiza
Odeio passar roupa. A mãe sabe disto. -Não vai te cair um pedaço passar a tua roupa – disse. Não vai mesmo, mas que é chato é. E ainda ficam me pressionando, pra andar depressa. Por mim não vou a lugar algum, fico em casa, no meu quarto, vendo filme e comendo pipoca, com o Luti e o Pingo. A mãe reclama que eu fico muito no meu quarto, mas é o único lugar decente desta casa.
Eu sabia que não ia terminar bem. Logo que este tal apareceu aqui, não fui com a cara dele. Aquele sorriso bonito, de dentes muito brancos, nunca me enganou. Eu sabia que ele veio pra nos trazer problemas. E depois, aquelas orelhas de abano e o olho caído. Falei que ele não prestava, ninguém acreditou. A Luciana disse que tudo ficaria igual. Qual o quê! Ela quase não entra no meu quarto, não me conta suas histórias de namorados, nem sei qual foi a última vez que rimos juntas. Não fomos mais ao parque passear com o Luti e ela não tem ido comigo ao cinema. Anda sempre “ocupada”. Queria ter um irmão mais velho. Garanto que ele teria tempo pra mim. As irmãs são muito egoístas, vivem ocupadas com suas coisas, nem dão bola pra gente. Odeio ser a filha mais nova, mais do que odeio passar roupa.
Esta roupa está horrível, não adianta passar que não tem jeito. Parece traje de velha. Com estas pernas finas, só posso andar de calças compridas. A mãe me mandou não pretejar muito o olho, que fica feio na minha idade. Isto é ela que acha. Sem maquiagem mesmo que vou ficar com cara de velha. Mas não tem importância. Ficar bonita pra quem? Lá só vai ter velho e criança. Ainda bem que convenci a mãe a irem sem mim. Vou depois de enrolar um pouco mais por aqui. Ninguém vai dar pela minha falta, principalmente a Luciana. Está mais ocupada que nunca.
A mãe ficou furiosa:- Luiza, onde se viu faltar ao casamento da tua irmã? Parece que só perceberam a minha ausência lá pelo meio da festa. E isto porque alguém perguntou. Não adiantou falar das aranhas. Ela não acreditou. Contei que centenas, talvez milhares de aranhas invadiram o pátio da casa e não pude sair. Eram aranhas de vários tamanhos. Uma caranguejeira enorme ficou bem na porta da frente. Da janela dava pra ver que elas estavam em volta de toda a casa. Algumas eram pequenas, mas outras grandes, gorduchas e cheias de pernas. Sorte que fechei a porta a tempo. Que bichos nojentos! Como eu poderia sair? Fechei todas as janelas para elas não entrarem, fui para o meu quarto e fiquei esperando o pai voltar. Ele saberia o que fazer. Não teve jeito, ela não acreditou em uma palavra. Também, não sei por que cargas d’água as aranhas se foram, sem deixar vestígio. Não ficou umazinha só pra servir de prova. Devem ter ido atazanar outra coitada que estava se preparando para o casamento da irmã mais velha.
A mãe não me entende mesmo. Achou estranho eu colocar o Pingo na caixa de doações, mas acabou concordando que era hora do ursinho fazer a alegria de outra criança. Tampouco ela entendeu por que eu quero trocar as roupas de cama. Não acreditou que eu enjoei dos babados e frufrus cor de rosa, mas prometeu comprar uns lençóis bem bonitos e modernos. Avisei que não quero herdar os da Luciana, que eu mesma escolherei os meus. Ela perguntou, com certa ironia, se eu iria me desfazer também do Luti. Ele latiu e se enroscou nos meus pés. Não. O Luti é meu companheiro de sempre. Sobreviveu comigo ao ataque das aranhas.
Ele fica.
(Conto publicado no livro: Nem todas as palavras;organizador Caio Riter;Nova Prova;Porto Alegre;2010)