Dos Anjos

Duas e meia da manhã. As atividades eram consideradas normais como em qualquer outro plantão da delegacia do Bairro de Baixo, na cidade de Muriaim. O único agravante era que aquele desgraçado não queria falar.

_ Ele diz que só lembra dos pés cruzados sobre a mesa. – disse o investigador Sereno. Tinha uma expressão nervosa e marcas de sangue nas mãos, e não as escondia enquanto falava ao delegado Bartolomeu de Sampaio.

_ Acho que tá querendo se fazer de doente mental.

_ Dê um tempo pra ele. Depois esquente de novo, pois antes do amanhecer virá um monte de gente pra querer liberá-lo – respondeu o delegado – e precisamos tirar alguma coisa dele pra poder justificar as marcas.

Bartolomeu de Sampaio era um sujeito durão, autoritário, de nariz adunco e sobrancelhas grossas e espalhadas, os quais uns óculos de armação grossa pouco ou nada disfarçavam. Tinha um corpo espadaúdo e barba sempre por fazer. E estes, segundo o próprio Bartolomeu, “impunham respeito”. Mas sabia que naquela cidade não era o único que mandava ou que tinha coragem e apoio para fazer valer suas vontades. E isso o incomodava:

_ O povo todo já sabe que ele tá aqui. Cacete!

No corredor que levava ao quartinho das “carícias”, o reboco das paredes encontrava-se cheio de falhas e o chão era sempre úmido. Havia um cheiro de mofo e dor que impregnava o lugar. O investigador Sereno adorava passar por ali. Era o seu purgatório. O céu era o quartinho, onde mostrava pra quem não presta como “gente” deve proceder. E, justamente nesse quartinho, sem entender o que se passava, padecia Dos Anjos. Na verdade ele só lembrava dos próprios pés sobre a mesa da casa de Elaine. Havia bebido demais, além das outras drogas, que também não haviam sido poucas e nem viu quando a polícia chegou,espancou e jogou-o, junto com seus companheiros, na traseira da viatura. Agora estava “sabe-se lá onde” sendo, ora interrogado, ora coagido a delatar alguém. Mas isso não iria fazer. Nunca! Afinal, ainda que não soubesse direito o que estava acontecendo, sabia que intentavam contra seus amigos e jamais os trairia. Podia ser bêbado e drogado, mas não era delator. E além do mais, logo os seus o tirariam dali.

A cabeça doía muito, resultado das drogas e das pancadas.

_ Quem é desgraçado? Eu sou homem, nunca machuquei e não devo nada a ninguém. Deus está vendo. Vocês vão pagar. – falava com voz baixa, sem compreender porque o agrediam. Nunca roubou ou desejou mal a quem quer que seja. Só era viciado e disso é difícil escapar. Já havia tentado parar inúmeras vezes, mas nunca conseguiu. E agora estava ali sendo espancado porque seu vício era mais forte. A surra era dobrada: da vida e daqueles que se punham acima da lei, da moral e das virtudes, mas “Deus via tudo e eles iriam pagar”.

Pouco tempo depois, como previra o delegado, chegaram alguns amigos e parentes do detido exigindo respostas às inúmeras questões e a libertação do coitado.

_ Cacete! Quem eles pensam que são? Isto aqui é uma delegacia de polícia e não a casa da mãe Joana - pensava Bartolomeu enquanto cumprimentava os presentes, que não estavam desejosos dos seus cumprimentos, e foi logo se justificando:

_ O rapaz resistiu à prisão e tivemos de ser firmes, senão perdíamos o respeito, mas já, já o liberaremos. Mas fique bem claro que é em consideração a vossa excelência, o prefeito, - e dirigindo-se aos mais jovens - que vocês foram incomodar nessa hora da noite, e à Dona Soledade, que vou soltar o rapaz. Vou eu mesmo buscá-lo. Já volto. Disse isso e amaldiçoou o fato de trabalhar numa cidadezinha do interior onde todos se conhecem e as influências de algumas famílias valem mais do que dinheiro vivo.

Na sala da delegacia acomodavam-se como podiam Dona Soledade, avó do rapaz, sua filha Janice, o prefeito Jorge Oziel e os jovens Lázaro, Edinho, Manoel e Geminho, amigos de Dos Anjos. Esses últimos os mais exaltados.

O choro de Dona Soledade, o conforto sussurrado por sua filha, as palavras seguras e firmes do prefeito: -“Tudo vai dar certo. Eu garanto.” - e as falas dos rapazes, já bem próximas de gritos produziam um barulho irritante que se fazia chegar até o pequeno ambiente onde Dos Anjos apanhava. Dos Anjos ouvia tudo. No entanto, não podia ser ouvido – tinha uma mordaça sobre a boca que só era retirada quando as perguntas eram feitas, nos intervalos das torturas. O delegado entrando no quartinho pediu ao investigador Sereno que parasse de bater no rapaz, “pois a família já tá aí junto com a tropa de choque e tudo.” Foi quando, de súbito, um vento forte e frio soprou fazendo com que todos se distraíssem. Alguns se arrepiaram, outros ficaram confusos e seus sentimentos afloraram-lhes às faces. Afinal, estavam todos muito nervosos e sem perceber o que acontecia.

Passos... O delegado voltava e um silêncio gelado vinha com ele... Todos se entreolharam e buscaram ver “o menino”, mas não viram. E o gelo do silêncio falou o que ninguém queria ouvir:

_ O rapaz tá morto... Caiu da cadeira e bateu a cabeça no chão, uma fatalidade.

E essa foi a notícia de primeira capa do Mangabeira do Vale, jornal que cobre toda região do Vale de São Carlos da Barra. E sobre ela as pessoas discutiram e opinaram por longo tempo, mas só Dos Anjos sabia, na verdade, o que aconteceu: fora assassinado, e Deus viu tudo! Eles iriam pagar. Estaria lá com Ele. Cobraria essa justiça pessoalmente.

Verão / 2009

Joh Valentin
Enviado por Joh Valentin em 28/11/2010
Reeditado em 29/11/2010
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