O Telefonema

A angústia que abrasava o seu íntimo fazia o seu rosto contrair-se num esgar de desespero. De que valia continuar vivendo se ele era um solitário em meio às mais de duas mil pessoas que moravam nos oitenta apartamentos do bloco residencial onde estava seu minúsculo mundinho de sessenta metros quadrados? Em meio àquela pequena cidadela, sem saber, todos eram companheiros na solidão comunitária. Alguns habitavam sem morar naquela colméia humana. Muitos cruzavam seus destinos no microcosmo do elevador por anos sem se entreolharem, sem um sorriso, mesmo que amarelo, quiçá por cortesia.

O porteiro, coitado, um migrante boliviano, que sabe Deus como foi parar em João Pessoa, tentava diariamente, debalde, com o seu sorriso franco e seus “Buenos Dias”, “Buenas Tardes” e “Buenas Noches” transmitir um pouco de cortesia naquele mundo hermético e eremita do cada-um-por-si.

O espelho do lavabo refletia um rosto jovem que até bem pouco tempo atrás apresentava o tom rosáceo de uma juventude sadia e desafiadora. O mundo para ele era um parque de diversões. Faculdade durante o dia, baladas na noite alegre nos bares da moda. De vez em quando um “luau” na Praia do Bessa e Camboinha. Mas “luau” arretado mesmo, no dizer do paraibano, era em Areia Vermelha. Dependendo do grupo e das gatas convidadas, Areia Vermelha se transformava numa Tambaba, não aquela Tambaba do naturalismo sadio, mas uma Tambaba do nudismo devasso, orgiástico, dionisíaco. Rolava de tudo. Do destilado turbinado com energético às carreirinhas brancas modeladas com cartões de crédito. Das cigarrilhas de “cannabis sativa” aos cachimbos recheados de “pedras malucas”. Somente quando Netuno empanzinava a pequena praia com a maré alta é que os barcos retornavam ao continente... Não raro a orgia continuava em algum ou outro “AP”.

Quando os pais, que moravam no brejo paraibano, telefonavam ou pediam notícias pelo MSM, ele respondia que estava tudo bem, que não se preocupassem.

Passou o primeiro ano...

Faculdade e festas...

As notas na faculdade se não eram boas, dava para o gasto e a vida era tranquila.

No segundo ano ele conheceu uma gata muito louca. A menina era linda. Corpo alucinante e PhD em Kamasutra.

Um dia, depois de uma aula bem elucidativa, os dois, exaustos, arfavam ainda quando ela virou-se de bruços e escorregou para a beirada do leito, depois, abriu a bolsa jogada ao pé da cama, e de lá, retirou uma cigarreira prateada. Sentou-se de costas para ele e ficou manipulando o acessório niquelado. Depois se virou para o centro da cama e ele foi apresentado ao mundo branco do torpor.

-Gata, isso aí na cigarreira é o que eu estou pensando?

-Claro gatinho!

-Desculpe gata! Mas o meu caso é somente destilado, whisky, vodka, gim, preferencialmente com energético. Não dispenso também uma boa cachacinha paraibana. Essa doideira aí, ‘tou fora!

-Gato! Até agora, na cama, eu só te apresentei os primeiros níveis do sexo doideira...

-Como assim? Os primeiros níveis?

-Os níveis um, dois e três... Agora, meu gato! Vou te apresentar o sétimo nível. Para tanto é necessário que os dois, eu e você, claro, estejamos bem turbinados. Ligadaaaaços. Entendeu? Gato, até agora você não viu nem o bê-a-bá do que eu sou capaz.

À frente dele ela ofertava a cigarreira em cima de um travesseiro como se uma bandeja fosse. O pequeno objeto, em sua superfície lisa, ostentava pequenas carreirinhas brancas, tendo ao lado, descansando, uma nota de vinte dólares, novinha, semi-enrolada.

Foi amor à primeira vista. Aquela foi a primeira de muitas outras vezes. O caminho, a partir de então, foi vertiginoso, incontrolável. Da carreirinha branca às pedras, ele saiu do primeiro ao sétimo nível em poucos meses.

Em pouco tempo ele cheirou e fumou o celular, o MP4, a televisão e os móveis do pequeno apartamento.

Veio o trancamento de matrícula, internações constantes, broncas do pai e desconsolos da mãe.

– o –

O espelho parcialmente embaçado pela água quente que escorria do chuveiro refletia um rosto cadavérico, emaciado. Com olheiras fundas, lábios ressequidos e cabelos emaranhados.

Uma angústia violácea saltava dos olhos tristes, baços, que fitavam aquele fantasma que o encarava de volta.

– o –

Lentamente ele caminhou para debaixo do chuveiro.

Na mão esquerda uma gilete recebeu um pingo morno. Os olhos estavam fixos no pulso direito. Na boca, o travo amargo que o engasgava desde cedo foi substituído pelo gosto salino das lágrimas que se imiscuíam com a água que escorria de sua fronte.

-(...)

Ele engoliu seco um soluço contido.

Levantou a mão esquerda e levou a gilete em direção ao pulso direito para o primeiro golpe.

A água escorria abundante e tépida por todo o seu corpo.

Uma névoa espessa dava um tom leitoso à lâmpada no teto.

Estranhamente seus pés estavam enregelados, mesmo cobertos pela água quente do chuveiro.

Longe...

Bem longe...

Muito longe, distante. O telefone tocava insistentemente na sala.

-Alô! Quem fala?

-Gabriel?

-Que Gabriel que nada!

-Gabriel? Por favor! Vem para cá, urgente. Aconteceu o que a gente temia. Ela tomou um vidro de pílulas para dormir. Já liguei para o hospital. Encontre-me lá, ok?

-Alô! Alô! Aqui não mora nenhum Gabriel. Foi engano...

(...)

Ele pousou o fone no gancho e ficou olhando fixamente para a mão esquerda, a gilete refletindo o neon das luzes decorativas do abajur, um dos poucos objetos ainda por vender.

Sentado rente à mesinha do telefone ele chorou profusamente.