Julião Decidiu Viver

Julião Decidiu Viver

Eram três horas da manhã quando ele entrou em casa. A neblina não permitia que se visse muita coisa na rua. Os cachorros não paravam de latir, e isso o incomodou, mas é impossível controlar a cachorrada no cio. Não se questionava porque vivia naquele ritmo de vida, só sabia que era preciso. Deitada, ao lado de um dos filhos, sua mulher, a pessoa mais linda e compreensiva do mundo, abria os braços em sua direção e seus lábios lhe pediam carinho. Ele prontamente atendeu – não podia ser diferente. Tudo na sua vida estava traçado e por ele era aceito – era a vontade de Deus: nascido no seio de uma família miserável, filho de um pai alcoólatra e agressivo e de uma mãe submissa, analfabeta e com problemas mentais. A educação regular que recebeu não avançou mais do que a 5ª série do Ensino Fundamental e aos 20 anos já era pai também. O que o mundo dele esperava, jamais receberia. O que seus filhos esperavam, também não. Era fato que nunca poderia manter sua família com o salário que recebia do emprego de servente de pedreiro. Logo, o instinto de sobrevivência e o orgulho falaram mais alto em suas atitudes e escalar as margens da sociedade, no submundo que tão bem conhecia, foi relativamente fácil. Abraçado à esposa, mergulhava em seus pensamentos e recordava o passo – a – passo dos seus atos de coragem e sabedoria que o levaram até ali – afinal, malandragem pouca é bobagem! Agora tinha dinheiro e respeito, uma mulher bonita e uma pistola 9 milímetros , além de diversos comparsas que o apoiavam e protegiam. Sabia que, dentro da realidade local, aonde se encontrava era o topo. Conhecia diversas histórias parecidas com a sua, e o fim trágico de cada uma delas, mas acreditava que com ele seria diferente. Afinal, tinha agora 35 anos e já havia vencido as estatísticas das Secretarias de Segurança, estava maduro no crime e na arte de sobreviver. A noite estava gelada como tantas outras que havia vivido e amado, só os cachorros não paravam de latir (malditos!). No mais, tudo rotineiramente normal. Largou o abraço quente da esposa e foi ver como dormiam os outros filhos. Cobriu-os e beijou-os, um a um, como amoroso pai que era. Passou a mão no rosário que trazia no pescoço, pediu forças e perdão a Deus, afinal, também não se chegava aonde chegou sem um pouco de fé e crueldade – uma em especial bem recente, cometida horas atrás – e por essa, não sabia o porquê, se arrependia mais do que pelas tantas outras. Mas a fila anda, os barcos sobem e descem os rios e a verdade é que, certas coisas precisam ser feitas. Tinha um nome e uma reputação a zelar. Na pobreza, esses são os maiores bens que um homem pode ter.

De repente uma canção passou pela sua cabeça, coisa do subúrbio ganhando o mundo nas rimas e improvisos dos moleques da área:

Quando eu era pequenino

Do tamanho de um botão

Escrevi meu nome à bala

Na porta do camburão.

Balançou a cabeça e riu. Voltou ao quarto onde sua bela esposa o aguardava, agora já sem o caçula ao lado - havia já levado o pequenino ao berço. Tirou a camisa e o rosário e preparou-se para o amor, mas surpreendido pelo arrombar da porta de seu lar, não teve tempo de esboçar uma reação em defesa da própria vida e da família. Cinco tiros perfuraram seu corpo, que caía, inerte, diante da esposa e do olhar do filho mais velho que, apavorado e repleto de medo e fúria, bramia vinganças. A noite tornou-se mais gelada ainda. Que sede! Os lábios e a garganta ressecaram rapidamente, o ar e as forças começavam a faltar. O pouco de consciência resistia em favor da vida. Queria viver, escolhia viver! O ar, o ar, meu Deus! Levou as mãos ao pescoço, não encontrou o rosário (quem sabe se estivesse com ele poderia ter uma chance. Quem sabe?), olhava ao redor, mas não conseguia reconhecer os seus algozes, também não conseguia mais ouvir os gritos da mulher nem as juras do filho. Ar, ar, meu Deus!

Desesperado, buscou em suas últimas forças um pouco de oxigênio – queria viver, escolhia viver. Ahhhhhh. E acordou bruscamente, levantando-se, suado e ofegante, de sua cama, na cela do presídio onde se encontrava. Estava vivo, estava vivo e o mundo precisava saber disso. Pediu, com aspereza, ao companheiro de cela que passasse o aparelho celular, fez diversas ligações e naquele dia não conseguiu mais dormir.

Primavera de 2009.