Possibilidades
Há momentos que a vida dá giro em nós mesmo, transforma e muda tudo que acreditamos. O que era um simples dia à dia torna-se um pequeno inferno de onde não se pode escapar. Pode acontecer com qualquer um que, simplesmente, estava muito distraído para perceber o quanto pode se surpreender com as possibilidades.
Grandes cidades estão abarrotadas de pessoas que circulam enlouquecidas com seus horários e obrigações, nada percebem até que algo interrompe sua rotina corrida. Pode ser um acidente no trânsito, um velho conhecido ou na pior das hipóteses um assalto. Cada pequeno detalha monta um cenário que te leva a insanidade.
Em um dia qualquer, tarde quente e seca de verão, Verônica andava apressadamente pela calçada. Suava e ofegava com o esforço que fazia para não se atrasar para mais um infeliz dia de aula na faculdade. Cansada com todos seus problemas na cabeça, exausta não pelo esforço, mas por ter que passar por isso novamente. “Maldito ônibus!” exclama na sua corrida.
A garota podia chegar mais cedo a sua tortura de Segunda à Sexta, atrasou-se por causa da baldeação, pegar um ônibus até a centro e outro até o bairro de sua faculdade. “Ainda não acredito que tenho que ir para o trabalho à tarde. Merda de vida!” pensa com raiva concentrada no movimento da rua para não esbarrar em alguém.
Não era de forma alguma o melhor momento de sua vida, ultimamente o desânimo inundava seus pensamentos. Quando não quer mais viver sua própria vida, trabalhando e estudando sem parar durante 10 horas por dia, está na hora de férias ou pedir demissão. “E pra deixar qualquer um louco” diz. Poucos prestavam atenção, as pessoas passavam por ela também muito apressados e imersos em problemas só seus.
“Isso aqui tá um formigueiro do Inferno” pensa já bem distraída. Dobra a esquerda e segue pela calçada, essa rua estava mais tranquila para caminhar. Na corrida ridícula e cansativa a jovem tropeça numa saliência na calçada e cai desconcertadamente:
– Chega! – grita esparramada no chão.
Levanta o tronco do chão e se senta. Coloca as mãos suadas no rosto que escorria como que derretendo sobre o sol quente. Respira profundamente o ar poluído daquela cidade urbana. Pensa nas inúmeras possibilidades para ocupar o dia. Estava com muito calor podia ir numa lanchonete e gastar seus últimos cinco reais do mês com um sorvete triplo com calda; ou pegar o ônibus e voltar para casa, tomar banho bem frio e dormir até que o dia acabe:
– Ah, essa é boa! – exclama surpresa em voz alta.
Ainda sentada, sem a mínima vontade de levantar da calçada imunda, fala para si mesma: Melhor ir para casa dormir, com o ar condicionado ligado – inspirando profundamente se levanta e volta à parada de ônibus.
Ao cruzar a rua, uma moto que passa em alta velocidade o sinal vermelho, acerta em cheio a jovem. O corpo fica estirado no chão, da cabeça surge uma pequena poça de sangue que aumenta conforme a vida sai do corpo.
Um fim bem típico para uma suburbana, vítima da impunidade. E logo o motoqueiro, ileso, levanta-se e sai de moto sem prestar socorro a pessoa que acabara de atropelar.
De longe Verônica vê seu corpo estendido no chão. “Então é assim que tudo termina” pensa pairando sobre a rua onde o acidente se desenrola. Segundo passam, tudo fica escuro de repente. Um grito ecoa no nada, mas preso a algum lugar.
A jovem reprimiu um grito e percebe que ainda está sentada no chão, suando mais ainda, de pavor. A lembrança do acidente parece tão clara e nítida em sua mente, como se tivesse realmente acontecido, só que em vez de ela estar estendida na rua morta fosse outra infeliz.
Aos poucos se convence que foi um alucinação, causada pelo estresse e o esforço físico. “Isso mesmo só uma pequena crise de insanidade” sussurra falando de novo para si mesma, e completa pensando: “Melhor não atravessar ruas hoje”. De repente, um rapaz vestindo um clássico, jeans, camisa branca e tênis surrado, passa olhando com um sorriso no rosto e pergunta:
- Caiu no chão? – diz num tom debochado.
- Não tô tomando um solzinho – responde desaforada, tirando o sorriso do rosto do rapaz.
- Ah, bom! – fala meio sem graça e estende a mão em sinal de ajuda para a jovem, logo ela aproveita o pouco ânimo que surge e se apoiando ao estranho se levanta.
- Não parece que teve um dia bom ...- comenta o rapaz.
- Com certeza esse é um dos piores!
- Não quer tomar um sorvete? Eu pago – pergunta em tom de piada.
- Sorvete, é? – faz uma careta e começa a limpar a poeira da roupa – Engraçado seu duplo sentido, mas se for aquele sorvete na Lanchonete do Seu Zé, eu quero.
- Claro que é! Vamos atravessar a rua e te deixo pedir qualquer um – flertando sem parar e com um sorriso enorme no rosto. Verônica é uma mulher bonita, viu claramente as intenções.
Um pensamento lhe veio como um estalo e as palavras saem:
- Atravessar a rua nem pensar!
- Por quê? Algum problema com o asfalto? – indaga se rindo da expressão de choque no rosto da garota.
- Não... – ainda meio assustada inventa uma desculpa que não é de todo mentira – Eu vi um atropelamento aqui mesmo, outro dia... Vamos atravessar mais adiante naquele trecho que é mais tranquilo.
- Tá, que seja – concorda o jovem, um poucos desconfiado e pergunta enquanto eles andam para o tal trecho – Como que foi o acidente? – Verônica que acabara de recompor a expressão, relata todos os detalhes do acidente enquanto andam. Um fato que ela conhecia muito bem, omitindo que a vítima havia sido ela mesma.
Chegando na sorveteria, ambos sentaram nos banquinhos giratórios do balcão. O rapaz, chamava-se André, pediu um sorvete simples de dois sabores, e ela um sorvete triplo com calda:
- Tu disse que eu podia pedir qualquer coisa – diz um pouco constrangida e completa pra fazer graça da situação – Obrigada, economizei os últimos 5 reais do mês.
- Coisa de pobre! – comenta rindo junto com ela e volta a atenção para seu sorvete e pergunta – Não quer sair comigo amanhã a noite, pra jantar, dançar, sei lá?
- Tu não perde tempo, né? – responde envergonhada da franqueza do rapaz.
- Desculpa é que tu parece bem legal ... – de repente a porta da lanchonete é aberta com violência, entram dois jovens, um armado com uma pistola e outro que segue direto para o caixa enquanto o outro dá cobertura.
- Passa a grana do caixa rapidinho! – grita o assaltante desarmado, a funcionária que estava no caixa entrega todo o dinheiro que estava na máquina registradora.
- Quem tá com dinheiro, joia e celular vai botando na sacola – fala o outro assaltante armado.
- Não vou dar porra nenhuma! Seu merda! – grita desaforado André e continua - Vai se ferrar! Não vou ser humilhado... – André não termina a frase, leva um tiro no peito e cai morto no chão, Verônica se atira por cima dele e chora convulsivamente.
- Não, não, não, não ... – balbucia entre lágrimas.
A jovem continua chorando, os olhos embaçados, quando sente que não tem mais nada em seus braços, seca o rosto com a mão e olha espantada ao seu redor. Estava novamente sentada na calçada imunda. Fica uns instantes tentando se recompor e levanta-se rapidamente, lembrando que se ficasse ali a possibilidade do rapaz a encontrar e tudo aquilo acontecer de novo era possível. “E agora? Acho que enlouqueci” pensa confusa.
Verônica anda apressadamente pela calçada, agora havia se convencido de encarar suas responsabilidades. Vai para a faculdade, depois para o trabalho.
Depois do dia exaustivo, tanto físico como mental, a jovem vai para o banho tão merecido. Apareceu na aula pela manhã, foi trabalhar a tarde. Enquanto a água escorria por seu corpo cansado, e a espuma se espalhava pelo box do minúsculo banheiro, Verônica inclina-se para pegar o xampu que ficava na parede a sua frente. Nesse movimento, em apenas segundo, o chão some de seus pés, cai de costas no box e bate violentamente a cabeça na parede.
No chão de um banheiro qualquer de um prédio, em um bairro de periferia, jaz morta, por um acidente ridículo, uma jovem de apenas 21 anos. Vítima do acaso.
OBS.: Esse conto está concorrendo na V COLETÂNEA - Poesia, Crônica e Conto / 2011, da Casa do Poeta de Canoas, afim de ganhar patrocínio e ser publicado junto com outros contos. Espero que gostem da leitura. Alda Duarte.