Pelego
Celso Belmonte é um homem que acaba de entrar na casa dos “enta”; fez quarenta anos na semana passada. Não tem mais o fogo da juventude, que fazia sua mulher subir pelas paredes acordando a vizinhança, nem a paixão e invencibilidade dos vinte anos. Celso adora mesmo é sua poltrona na frente da TV. Ele trabalha no Fórum Judicial de sua cidade, não sei em qual setor.
Funcionário público é um bicho estranho: tem os querem levar vantagem em tudo, os que sabem tudo, os que acham que sabem tudo, os que sofrem de Síndrome da Segunda-Feira, os “chepone” (chefes de p... nenhuma), os mal educados, os mal humorados crônicos, os que vivem rindo, os que vivem no mundo da lua, os que tem antena parabólica e nada escapa à sua atenção, os dedicados servidores do D.I.V.A. (Divisão de Investigação da Vida Alheia), os abelhas que voam e fazem cera e os relógios que fazem hora o dia todo, mas todos são famosos mesmo por tomarem café como água e por não fazerem nada.
Celso é diferente: cordial com seus colegas e com o público atendido, não fala mal nem bem, foge de polêmicas, é zeloso com seu trabalho, leva marmita e não se incomoda com a fila para bater o cartão ao término do expediente. É muito elogiado, odiado, amado e criticado por isso.
Em vinte anos de serviço público já recusou tantos cargos de chefia que nem dá para contar nos dedos das mãos. O que Celso quer mesmo é trabalhar, chegar em casa e ligar a TV. Isso já basta, afinal nunca teve objetivo maior que esse.
Quando chega em casa, senta na sua poltrona e dorme na frente da TV com o controle remoto na mão. Só acorda para jantar, momento em que conversa seriamente sobre questões sem a mínima importância com a esposa e a filha de quinze anos.
Ainda não percebeu que sua menina já é uma mulher. As coisas andam rápido demais; é tudo de um dia para o outro. Hoje é um botãozinho, amanhã é uma rosa.
Após o jantar, toma um banho — já que não faz mal nenhum após as refeições — escova os dentes e vai dormir. Sua esposa sente-se infeliz porque Celso sempre deita com a bunda virada para ela; é a posição que ele acha mais confortável, mas ela não.
— Sou uma quarentona bem gostosona e tenho muito amor para dar! — diz para o espelho — Ainda arrumo um Ricardão! — afirma da boca para fora.
No sábado de manhã ele lava o carro, o cachorro dá banho nele, e a família via almoçar fora. Depois vão ao shopping fazer compras e passear, e no domingo o almoço e o passeio são os mesmos. Suas mulheres — a esposa e a filha — fazem muitas compras, sempre pagando com cartão de crédito abastecido por Celso. Cartão que tem prioridade no orçamento familiar.
Uma greve no Poder Judiciário tem início e Celso resolve não aderir ao movimento; com ele não poderia ser diferente. Em meio aos gritos de “Pelego! Pelego!” ele chega à porta do Fórum onde é barrado pelo comando de greve. Durante aqueles amargos meses ele foi impedido de trabalhar e de abastecer os cartões de crédito da esposa e da filha.
Quem esperava que elas compreendessem o coitado, enganou-se. Jogam na sua cara que são mulheres infelizes e que ficam o dia inteiro mofando em casa por causa dele. Celso até tenta sugerir que elas podem se divertir no clube, mas sabe de antemão a resposta:
— Naquele lugar de pobre? Eu não!
Celso está muito triste e deprimido por não poder dar o melhor para sua família. Não lava mais o carro, o cachorro não dá mais banho nele, não leva mais suas mulheres para almoçar fora e passear no shopping e não sai mais da frente da TV; fica lá embolorando.
Às vezes suspira e pensa:
— Onde foi que minha vida saiu dos trilhos?
Nunca se deu bem com os problemas. Está ciente da sua dificuldade em empregar sabiamente a palavra “não” na hora certa.
— Devia ter dito “não” na ocasião do meu enterro, ou casamento, como quiser. — lamenta tardiamente, num surto de coragem, mas sabe que não é verdade porque ama sua mulher. Tem tanta certeza disso quanto de que a corrupção será extinta em breve.
A situação é um caos desenfreado. Parece mais a superfície de um lago em dias sem vento; um verdadeiro caos para ele. Não sabe o que fazer e nem se esforça para, pelo menos, pensar sobre o assunto.
É mais fácil assim: sem pensar, sem agir. “Deixa a vida me levar, vida leva eu”, mas ela está levando-o para o lado errado!
— O que posso fazer? A vida é assim mesmo!
Tenta enganar a si mesmo, dando essa desculpa esfarrapada, mas ele é o único que não acredita nessa ladainha, e lembra-se, com pesar, da célebre frase de seu falecido avô:
— Desculpa de peidorreiro é tosse!