Mais um Crime Social.
É noite, fria e chuvosa. Todos estão acordados, pois hoje, foi mais um dia de apreensão e medo. A água que desabou durante todo o dia, deixou-me instável e encharcada. A qualquer momento, posso ir ao chão. Se as pessoas que aqui se abrigam não forem rápidas, irão comigo.
Somos iguais. Frágeis, aparência desagradável e condenados a um futuro incerto. Apenas, mais uma estatística social. Um lado do país, que não dá ibope. E isso nos revolta. Enche-nos de ódio. La embaixo, o córrego esta subindo. O esgoto, esta ficando mais denso. Daqui a pouco, a água invade os barracos. De minhas rachaduras, minam água e o caçula, enfraquecido pela fome e doenças respiratórias, devido á todo mofo e umidade, é o mais prejudicado. Nesse momento, sua mãe pede a Deus, que amenize as crises alérgicas. Ela sabe que não pode sair com ele para o Pronto Socorro. Com quem deixaria os outros filhos, com toda essa chuva lá fora? Seu marido, a muito foi embora. Levado pelo alcoolismo e pela facilidade em sustentá-lo nas ruas. Seu segundo filho, hoje com 14 anos, não voltou para casa. Ela teme que seu destino seja igual o do seu primogênito. Assassinado a sangue frio, á um tempo atrás. Tempo, onde ela buscava ajuda. Recorria ao serviço social, polícia e quem pudesse ajudá-la. Mas para todos eles, esse jovem, não demoraria a fazer parte de mais uma estatística, dos jovens mortos por envolvimento com drogas antes de completarem 18 anos. Ela sabe que a mesma história se repete na casa dela. Que sepultará mais um filho daqui uns dias. E pede a Deus, que tenha direito de fazê-lo dignamente. E quando a hora chegar, ele não seja torturado, que seu corpo não seja mutilado ou carbonizado, ou ainda, que os traficantes ou policiais deixem um corpo para essa mãe desacreditada, velar. Ela teme pelo futuro de seus filhos, pois já estão enfurecidos, cansados pelo preconceito dos coleguinhas de escola. Não querem ser chamados de favelados. Querem brinquedos, ir ao Mcdonalds, usar roupas novas e um tênis pra correr. Mas não é essa a realidade deles, e sim, crianças famintas. Acostumadas à violência desde muito cedo. Aumentada pela inconstância de um pai viciado e violento. Nas ruas, vitimas do medo. Medo das milícias, dos traficantes de outros morros ou que a policia invada a favela. Já sabem o que acontece. Quando mais novos, não ouviram contos de fadas, e sim das chacinas, assassinatos cruéis e do esquecimento do governo. Eu tenho medo. Sei que são crianças revoltadas, que dificilmente, serão a exceção que passa no Globo Repórter, como exemplo de luta e dos benefícios do estudo. Eles preferem a realidade. Os meus meninos não sonham em se tornar policias, como a maioria da sua idade, mas torcem para serem aceitos no tráfico. As meninas, apesar do corpo frágil e mal formado, já imaginam o que poderão conseguir se prostituindo. Eu penso, como sair dessa situação? Como salvar minhas crianças. Mas não acho solução. O governo finge não ver, me dá o Bolsa Família, para que eu fique calada, não dê trabalho. Mas essa situação só me revolta. O governo nada faz, pois nunca há verba e não é importante, porém, deu no noticiário, o País emprestou muito dinheiro ao FMI. Mas do que isso, ao emprestarem a quantia e deixarem de aplicá-la no país, tiraram a única oportunidade dos meus filhos e de tantos outros. A essa altura, não acredito em mais nada. Como as crianças, estou cansada. Esperando o desfecho da história. Como nas novelas, aguardando o último capítulo. Torcendo, para ele não ser tão doloroso e demorado. Mas não vejo alternativas. E essa chuva que não passa, e encharca ainda mais a terra. Consigo sentir a terra cedendo e a essa altura, o córrego já deve estar bem acima do normal. Agora me recordo, a defesa civil e os bombeiros estiveram aqui. Queriam interditar meu barraco. Em que melhoraram minha vida? Só me disseram o que eu já sabia. Não me contaram nenhuma novidade. Disseram para eu sair, tirar meus filhos se não quisesse morrer. E para onde eu iria? Debaixo da ponte? Ou para a chuva? Simplesmente, foram embora. Disseram que isso, não era problema deles. Acho que chegou o momento mais crítico, o esgoto invadiu as casas, já ouço os vizinhos salvando o que podem. Mas já tomei minha decisão. Não quero sair. Não tenho para onde ir e um futuro para meus filhos, não posso garantir. Sei que se saio, não darei a eles a salvação necessária. Só os condenarei a uma vida de miséria e violência. Não posso mais cruzar os braços e ser conivente. Deito todos eles, tento acalmá-los. Fazê-mos uma oração e eu os entrego nas mãos de Deus. Canto uma canção e tento distraí-los para que não percebam a água entrando. Eles adormecem. Nesse momento a gritaria se alastra. As pessoas, aos berros, pedem para que todos saiam de suas casas. Já começaram a desabar. Não preciso me preocupar, a hora já chegou. Mas novamente, me pego pensando em meus filhos, tudo poderia ser diferente. Só precisávamos de uma chance. Que alguém se preocupasse com a gente. Mas nunca fizeram nada e a situação só piorou. Eu culpo o governo, pois saibam, que desse crime que cometo contra a minha vida e de meus filhos, ele é altamente conivente.