Sem Gelo
- Tenha uma boa estada.
Agradeço esforçando um sorriso preguiçoso e aguardo, impaciente, o elevador que impulsionará minha rotina. Ao entrar no quarto do hotel percebo o cheiro de solidão e perco o olhar enquanto aciono as luzes. Sigo ao banheiro imaginando a transparência das barras de ferro que se escondem atrás dos azulejos cândidos. “Que cadeia mais limpa!” penso, enquanto tiro o terno com a mesma vontade de um stripper. “Por que nossos ternos não são como os deles? Um puxão e... ZIIIIP!!!” sigo pensando mas já incomodado com o peso da dúvida. Concluo que a lentidão faz com que a óbvia desvantagem corporal seja atentada aos poucos. “Só pode ser isso!”, sossego.
O escaldante jato d´água maltrata a friúra da pele. Com os braços apoiados no vidro sinto o filete quente escorrer pelo queixo. Talvez se as lágrimas jorrassem com a mesma convicção rejeitariam os pensamentos doídos. Respiro a fumaça quente com força e gargalho, com evidente demência, em homenagem ao isolamento. Urro músicas que me envergonham, posicionando o microfone fantasioso no canto dos lábios. Prevendo o chão escorregadio policio a dança e ajeito a sola do pé sobre o ralo. Lembro do primeiro beijo e faço gestos sedutores que, com certeza, já foram extintos do manual de regras comportamentais entre sexos opostos. Que beijo!
As mãos em concha, preenchidas com espuma, aguardam ansiosas o sopro fatal. Acompanho a chuva dos flocos em lentidão cinematográfica, indagando aos poucos a incoerência da cena enquanto a música tímida choraminga emocionada em minha garganta. O vidro embaçado estimula minha escrita que, sob o comando do firme dedo indicador, psicografa trechos inexplicáveis. Chicoteio a cabeça sem ritmo, declarando a independência dos embaralhados fios encharcados e delirando em alta temperatura.
Entupo as bochechas com água fervente e cuspo com força, desmanchando meu rabiscos literários em segundos. Abrasador, queimante, quase cáustico. Sufoco-me no calor, abano a fumaça, derreto-me aos poucos. Seduzido pelas manchas vermelhas nos ombros, imploro a qualquer autoridade imaginária a eternidade daquele instante.
- AAAAAAAAAAAAAAI!
Alienado no tempo sinto a tempestade gélida atritar minhas costas. A fumaça despe-se covarde. O prazer é castigado pelo tremor dos ossos, que estalam em volume máximo. Fujo do sofrimento e procuro o telefone, enquanto encharco o tapete do quarto.
- Alô??? É da recepção??? Minha água está gelada!!! – desabafo com a respiração curta e tom indignado.
- Estamos com um problema no aquecedor do hotel, senhor. – declara, morosamente, a recepcionista.
- Mas a água quente voltará hoje???
- Difícil prever, senhor.
Desligo o fone e desmorono no colchão, agora ensopando os lençóis. Posiciono-me em posição fetal, já desistindo de lutar.
Seria impossível vencer tanta frieza.