Uma grande amizade. Um presente especial

Sou Anastácio. Um homem comum. Mas ao mesmo tempo sofisticado, posso dizer assim. Eu explicando: tenho uma vida agitada, ando de um lado para outro, viajo por muitos países pelo mundo afora, conheço culturas e costumes dos mais exóticos e distantes países da terra, tudo por conta de minha profissão de jornalista. Me acostumei à toda sofisticação e vida cara que a modernidade poderia me dar e que o dinheiro pudesse pagar. Por outro lado, sou um homem de origem simples, embora nos padrões modernos eu tenha nascido em berço de ouro.

Meu pai, rico fazendeiro nunca economizou para dar a mim seu filho único, todo conforto e conhecimento possível. E também a prepotência que o poder e o dinheiro pode comprar, subornar e determinar as regras. Mesmo assim e felizmente, aprendi a dar apenas o valor minimamente necessário ao dinheiro, dando-lhe apenas o valor monetário que tem.

Felizmente e talvez por ensinamentos de minha mãe e de minha madrinha, duas mulheres abastadas, mas muito humanas e solidárias, que em suas andanças por creches, hospitais e albergues, freqüentemente me levavam consigo, para acompanhá-las nas visitas e entrega de doações que regularmente faziam, impregnando em mim, o sentimento de voluntário, de simplicidade e respeito ao ser humano na sua essência. Ou seja, não herdei quase nada de meu pai, contrariando-o e herdando quase tudo de minha mãe e de minha madrinha, essa figura há muito ultrapassada. Pelo menos me parece assim.

Minha mãe foi decisiva na minha vida para ser assim, ao me mostrar sempre que o dinheiro não compra caráter nem personalidade de ninguém, contrariando o ponto de vista de meu pai, fato que por muitas vezes presenciei calorosas discussões entre os dois. Ela, mulher carinhosa, professora por vocação, sempre transmitiu a mim, todos os conhecimentos que ensinava a seus alunos nas salas de aula. Era a professora educando seu filho e eu agradeço por isso.

Nas suas horas de folga, muitas vezes ela acompanhava minha madrinha, que era sua irmã, nas andanças pela periferia da cidade. E eu, quase sempre estava na companhia delas. E aprendi a conviver com as pessoas mais simples e humildes, fazendo inclusive grandes amizades que duram até hoje. Só depois de adulto, vim entender porque elas não iam nessas visitas em seus carros de uso pessoal, mas em um carro usado, já bem gasto, comprado exclusivamente para esse fim. Creio que se fossem nos seus carrões, certamente que muitas famílias visitadas se sentiriam inibidas e inferiorizadas. As duas sabiam o que estavam fazendo.

Mesmo contra a vontade de meu pai, com seu poder e autoridade, ela nunca baixou a guarda, se mantendo ativa na arte de educar e de ajudar as pessoas carentes. E foi essa educação que herdei para minha vida, para minha formação. O dinheiro do meu pai, claro eu herdei também, mas apenas lhe dou o valor para suprir as necessidades e conforto elementares, faculdades, viagens. Felizmente, creio poder assim dizer, o dinheiro e o poder não me subiram à cabeça.

Hoje, homem feito e formado, viajo pelos quatro cantos do planeta por conta de meu trabalho. Sou jornalista autônomo, atuando na linha de comportamento animal, fornecendo matérias para os maiores e mais importante veículos de comunicação do mundo. Já fiz matérias desde o Aconcágua até a Malásia, passando pelo Japão, pela Austrália, pólo norte e confins do Saara, sem esquecer todos os estados brasileiros. Tenho trabalhos publicados nos jornais, revistas e periódicos científicos do mundo todo.

Hoje tenho quarenta e cinco anos, sou casado a dez, com uma mulher interesseira e encrenqueira, estou esperando meus dois filhos pequenos ficarem maiores para me divorciar. Não vejo que seja justo deixá-los sendo educados e ensinados por ela, com certeza uma visão distorcida do que sejam os valores humano, o valor do dinheiro e do prestígio social. Também não sei se estou fazendo a coisa certa, em esperar uma data para essa decisão. Mas não quero exemplos dessa natureza para meus filhos. Por outro lado, me vejo às vezes me acovardando diante desse adiamento, já que não vejo solução para o fato.

Certo dia fomos ao cemitério acompanhar o enterro de um tio de minha esposa. Chegando lá, me senti entediado, sem o que fazer. Eu não tinha muita intimidade nem apego por ele, tampouco convivência. Estava ali apenas fazendo número e para fazer companhia à ela, companhia essa que aliás não era tão excitante assim.

Após cumprimentar algumas pessoas, comecei a me sentir inquieto. Não consigo ficar ocioso por muito tempo, meu temperamento não me permite isso. Salvo se estiver em um dia de folga, por conta de meus filhos. Aí sim, penso virar criança também.

Então saí andando pelo cemitério, olhando com curiosidade os túmulos, as inscrições nas lápides e começo a observar as datas de nascimento e de falecimento. Minha memória se ocupa em calcular a idade em que cada pessoa morreu. Me deparo com crianças de menos de um ano ou poucos dias de vida, até senhores com mais de cem. Minha pequena câmera fotográfica entra em ação, como sempre faz em tudo que vejo. É quase uma obsessão, fotografar tudo que vejo pela frente. Mas me detenho em fotografar, penso ser um desrespeito para os mortos. Na verdade não sei o que pensar, mas me vejo constrangido e paro os cliques.

Minha curiosidade me conduz cemitério adentro e me vejo no extremo oposto, após uma pequena ladeira, creio que a uns quatrocentos e poucos metros da sala de velório. É um lugar calmo e silencioso, poucas pessoas andando calmamente aqui e ali, umas compenetradas, outras visivelmente emocionadas. Continuo andando entre os túmulos, perdido em meus pensamentos e curiosidade. Vejo que uns túmulos são humildes, outros pomposos, numa indicação clara de poder econômico ou de interesse das famílias do sepultados. Aqui percebo que os abastados e pomposos se misturam aos humildes, numa ironia previsível, mas que passa desapercebida por grande parte das pessoas.

Minha curiosidade maldosa me conduz a uma interrogação sarcástica: alguns desses túmulos pomposos, cheios de mármores, estátuas e capelas, não representariam arrependimento ou dor de consciência de seus entes, por talvez tê-los abandonados à própria sorte, quando precisaram, antes de morrer? Será que esses monumentos vistosos não são expiação de culpa por não ter cuidado de seus entes, enquanto se podia? Sei que pode ser maldade minha, mas qual vivente não as tem uma vez ou outra? Sei também que inúmeros daqueles monumentos são verdadeiras e inocentes dedicatórias de saudade à perda dos amados mortos.

Mais adiante, a cerca de uns trinta metros vejo um homem já bastante idoso sentado sobre o mármore de um túmulo, fazendo-o de banco, de frente para outro, bem próximo. Percebo nele, pensamento distante, fisionomia cansada, triste. Muito triste. Parecia-me que ele dedicava resignação e oração àquela lápide ali em sua frente. Parecia pedir socorro, pedir companhia. Parecia desejar que o mármore abrisse e dali saísse a sua salvação, como se fosse a razão de ainda estar vivo, numa contemplação silenciosa e quase palpável. Não sei explicar como pude ver ou notar tudo isso em tão pouco tempo. Eu estava apenas de passagem. Mas aquele homem me chamou a atenção.

Me detenho, não ouso me aproximar mais. Fico ali parado, olhando-o absorto em seus pensamentos. Vejo lágrimas escorrer-lhe pela enrugada face branca, que ele não se preocupava em secá-las.

Aquele homem me comoveu. Sem perceber-me, passou a mão direita pelos olhos, secando as lágrimas que teimavam em escorrer pelo cansado rosto, talvez ofuscando-lhe a visão.

Devagar e em silêncio me aproximo um pouco mais. Não tinha forças e nem queria sair dali, deixando aquele homem isolado em seu mundo. Tinha de me aproximar, tinha de lhe fazer companhia, mesmo sem saber se era desejado presença de alguém naquele momento. Mas o certo é que me deixei envolver por aquele quadro surreal e por que não dizer cruel.

Pouco a pouco me aproximo mais. Sento perto dele, a um metro de distância, sem nada dizer e fico imóvel, tentando descobrir o que se passa no seu coração. Não será fácil, mas não me importo, não tenho pressa. Minha imaginação tenta me conduzir ao seu mundo. Quem sabe ao seu universo. Quem sabe não consiga, mas não faz mal. Eu tinha de tentar, era inevitável.

Meus olhos me conduzem aos dizeres em uma pequena placa retangular, ainda nova, confeccionada em bronze: “Aqui jaz Maria Guilhermina de Andrade, deixando saudade e certeza de breve reencontro”. *12/12/1922 – †17/07/2006.

Oitenta e quatro anos, fiz as contas mentalmente, como fizera várias vezes até poucos minutos atrás.

- Em breve nos reencontraremos. – Disse aquele homem, quebrando o silêncio, sem se dar ao trabalho de olhar para mim.

- Quem era ela? – Indaguei prontamente, mas com voz baixa e respeitosa, sem deixar quebrar aquela aproximação proporcionada por ele.

- Minha esposa.

- Foram casado por quanto tempo? – Perguntei, com o propósito de estabelecer uma comunicação com aquele homem.

- Sessenta e oito anos. Os anos mais felizes que um ser humano pode experimentar – Disse ele, olhando-me pela primeira vez nos olhos.

Mentalmente fiz as contas: ela se casou com ele aos dezesseis anos.

- Sinto muito que ela tenha ido.

- Eu choro todos os dias, meu amigo. É uma dor profunda, como se mil espadas estivessem penetrando em meu corpo, me dilacerando pouco a pouco.

- Posso imaginar.

- Não, não pode. Não poderá ter idéia do que seja essa saudade, sem experimentá-la. Nunca poderá, a não ser que a vivencie.

- Vem aqui regularmente?

- Todos os dias, meu filho. Todos os dias venho visitar a minha Maria. É assim que a chamava, chamo e sempre a chamarei. Minha Maria. Venho aqui todos os dias, desde que ela veio para cá. Não tenho outro objetivo na vida.

- Se amaram muito, posso perceber.

- Com toda certeza que sim. Nos amamos intensamente cada minuto de nossas vidas! Sou uma prova vida da existência do grande amor entre um homem e uma mulher.

- Teve muita sorte na vida, meu amigo!

- Sim, tive. Mas a separação é por demais dolorosa, por mais previsível que seja.

Conversamos por mais de uma hora, sentados ali naquele mármore de sepultura. Pareceu-me que ele gostava de minha companhia, consegui ver uma centelha de alegria em seu olhar, até então ofuscado pelas lágrimas. Não precisamos ser apresentados, não era importante nem necessário. Era um encontro causal, mas incrivelmente bom. Me fazia bem aquela aproximação.

A conversa com aquele homem me fazia muito bem, eu estava diante de um personagem de uma história sublime, de um homem desarmado, sem maldades ou reservas. Ele se permitia conversar com um estranho, dedicando confiança e confidência.

-Tenho de ir agora. – Disse ele, estendendo-me a mão em um cumprimento.

-Estou feliz por te conhecer. Muito prazer. Anastácio.

-Muito obrigado pela companhia. Sou Joaquim. Você é um bom homem.

-Que isso! Bondade sua. – Falei, de certa forma desconcertado.

-O que veio fazer aqui? – Quis saber.

-Vim para o velório de um tio de minha esposa. Mas fiquei meio deslocado e comecei a andar por entre os túmulos, vindo parar aqui.

-Entendo. Ficou inquieto.

-Acertou. É isso mesmo

-O que faz?

-Como?

-O que faz profissionalmente?

-Há, desculpe. Sou jornalista

-Desculpe a indiscrição.

-Por favor, fique à vontade.

-Obrigado. Agora estou mesmo de saída. Até qualquer dia. Foi muito bom conversar com você.

-Até breve.

-A propósito, antes de me aposentar eu era odontólogo, disse ele se voltando a mim.

E assim nos despedimos, eu fiquei parado ali mais alguns instantes. Estava disposto a continuar minha caminhada de curiosidades, mas mudei de ideia, aquela conversa fora bastante interessante.

Pensativo voltei para a sala de velório, deparando agora com muito mais gente, além de estarem mais exaltadas e emocionadas, pois aproximava a hora do sepultamento. Como previsto, minha esposa não dera por minha falta. Então me juntei àquelas pessoas, mas meu pensamento resistia em deixar a conversa que eu tivera. Estava decidido a voltar mais vezes para ver aquele homem novamente, já que ele vinha diariamente visitar o túmulo de sua Maria.

Então passo a visitá-lo no cemitério com regularidade. Fazemos amizade. Uma solitária e grande amizade, como eu nunca experimentara e sequer imaginara antes. Meus amigos ou familiares não sabiam disso, nem as dele, segundo me informara.

Então Joaquim começa a narrar o que seria para mim, a mais incrível, emocionante e envolvente história de amor. Não do ponto de vista de um escritor, mas sim do ponto de vista de um homem que de verdade experimentou o amor. Ele viveu o amor em sua plenitude absoluta. Amou e foi amado intensamente. Sinto vergonha. Sinto frustração, me sinto pequeno. Isso nunca aconteceu comigo. Provavelmente nunca experimentarei tamanho amor. Me vejo um pobre, fracassado, fraco.

Aquele homem me narrou uma história cheia de glórias, filhos, aventuras pitorescas, dignas de serem contadas.

Em cada encontro ele ia narrando sua história, sua trajetória pela vida, como em capítulos de um filme.

Conheço a intimidade daquele homem. Sei que ele não suportará por muito tempo, já está bastante velho e abatido.

Propus escrever suas memórias. Seria um segredo nosso. Após relutar um pouco, ele concordou e então começou a trazer-me retalhos de manuscritos que eu cuidadosamente transcrevia ordenadamente.

Depois que ele narrou sua história, pareceu-me mais aliviado, precisava conversar mais sobre outras coisas. Então começamos a conversar sobre outros assuntos, sobro o transcurso da vida, sobre profissões e outras coisas. Ele se mostrava um homem muito culto e inteligente, era uma pessoa do bem.

Passamos a divagar sobre banalidades, sobre o cotidiano, eu percebia que ele se sentia bem, às vezes até sorria. Uma dia lhe convidei para um vinho, no que aceitou prontamente. Saímos nós dois pela cidade, me dirigi a um bom restaurante. Ficamos ali umas três horas, o tempo se perdeu. Creio que foi um dos dias mais fabulosos de minha vida. Eu amei aquele homem, creio que muito mais que amei a meu pai. Tinha-lhe verdadeira devoção, um carinho que eu não sabia ser possível dispor a alguém. Eu não sabia que uma pessoa pudesse despertar carinho e amizade naquela grandeza.

Na saída do restaurante eu comprei duas garrafas do vinho que tomamos e dei-lhe uma de presente, ele ficou agradecido. A minha, eu tinha o propósito de guardar como lembrança daquela tarde. Eu tinha uma certeza: eu tinha um grande amigo.

As idas e vindas ao cemitério continuou, nos falávamos com freqüência. Muitas vezes eu viajava a trabalho, mas sempre que voltava para casa ia de imediato visitar meu amigo.

Cerca de um ano depois, numas dessas idas ao cemitério não o vi. Isso se repetiu por duas semanas. Fiquei preocupado, desejei ter trocado telefone, ou qualquer outro meio de contato. Dias depois, ao retornar de uma viagem, eu novamente fui ao cemitério e novamente ele não estava. Mas vi que havia alterações ali, houve mais um sepultamento.

Sentei no local que sentara tantas vezes e vi que havia mais uma placa com inscrição. Pude ler com tristeza: “Aqui jaz Joaquim Américo de Andrade, finalmente junto de sua Maria”. *17/01/1917 – †16/10/2007.

Não pude conter e chorei. Chorei todas as minhas lágrimas reprimidas e ocultas que acredito tê-las guardado desde a última palmada de minha mãe, aos meus oito, nove anos de idade. Não sei a causa, mas tomei para mim aquela dor, aquela saudade imensa sentida por aquele homem, quando o vi pela primeira vez. Talvez sentisse a falta de sentir uma dor medonha daquela. Talvez sentisse a falta de amar alguém naquela intensidade. Talvez sentisse a saudade de meu amigo. Talvez me sentisse diminuto, insignificante, mínimo, ridículo! O certo é que eu sentia uma tristeza medonha, que me dilacerava as entranhas.

Eu finalmente entendera meu amigo, quando ele me disse que ninguém entende sem ter experimentado. Finalmente sabia a dor de seu pranto. Finalmente eu entedia a dor de uma perda, entendia o vazio imenso de uma saudade. Aquela foi uma das poucas vezes em minha vida em que eu literalmente desabei.

Saí dali prometendo a mim mesmo visitar meu amigo sempre que possível. Enquanto eu conseguir me locomover. Enquanto eu poder caminhar, virei visitar o túmulo de meu amigo Joaquim.

Um bom tempo depois, uns seis meses talvez, enquanto eu estava ali sentado, pensando no meu amigo, e na minha vida, quase em transe, compartilhando de perto a companhia de Joaquim, senti alguém me tocar no ombro direito. Olhei e me deparei com uma mulher cuja fisionomia não me era família.

- Boa tarde. Posso me sentar? – Indagou.

- Claro – Disse eu sem jeito, como se tivesse sido flagrado fazendo algo errado.

- Como se chama?

- Anastácio. E você?

- Ruth.

- Me desculpe, mas...

Ela não me deixou terminar a frase, talvez se antecipando a um constrangimento, ou dispensando alguma explicação:

- Fique tranqüilo. Sou filha do casal sepultado aqui. Eu soube de você. Não estou aqui por acaso.

- Não entendo. – Eu não estava entendendo aquela abordagem.

- Não faz mal, eu explico. Sou a filha mais nova de seu Joaquim. Antes de ele morrer, tivemos uma demorada conversa. Só eu e ele. Não sei a causa, mas sempre nos demos muito bem, algo me diz que dentre seus filhos – Somos três irmãos – Fui a que mais presente estive na vida de meus pais.

- Ele era um grande homem. Devem se orgulhar dele. – Consegui dizer.

- Sim, ele é meu herói. Na conversa que tivemos, ele me falou de você. Por isso estou aqui hoje.

- É sério?

- Claro!

- Como posso ter certeza?

- Vai ter de acreditar em mim.

- Está certo, eu acredito sim. Não tenho nada a perder. O que ele disse?

- Disse que tinha em você um dos mais importantes amigos de sua velhice. Ele tinha adoração por você.

- Fico muito feliz. Eu também lhe dediquei muito carinho.

- Acredita em mim?

- Acredito sim, senão sua presença, sua abordagem não faria sentido.

- Então está certo. Isto é para você. – Disse ela me entregando um envelope pardo, com alguma coisa dentro. – Disse-me que te encontraria aqui, mas que só lhe procurasse depois que ele tivesse sido enterrado.

- Para mim? Mas...

- Sim, não é o jornalista Anastácio?

Peguei aquele envelope e fiquei sem saber se abriria naquele momento ou depois. Mas diante da expectativa de minha interlocutora, resolvi abrir ali mesmo, naquele momento.

Em seu interior havia alguns documentos e uma foto bem conhecida minha: uma que tiramos no restaurante, na única vez que saímos juntos. Lembro-me que pedi para o garçom nos fotografar com minha inseparável câmera e que depois, em um encontro posterior ali no cemitério lhe entreguei uma cópia de presente, com uma dedicatória.

Olhei no verso, estava a minha dedicatória: “Para Joaquim, um grande amigo, um grande homem que conheci em um momento sublime”.

Em baixo, logo em seguida, uma outra frase escrita por ele, com letras tremidas, mas bem claras: “A você, meu imenso amigo, o meu profundo agradecimento, minha dedicação. Eu não sabia, mas Deus ainda reservada uma surpresa boa para mim: Sua amizade e dedicação. Muito obrigado pela companhia agradável. Joaquim”.

Aquela dedicatória me comoveu. Não consegui disfarçar a emoção. E não queria disfarçar, não era vergonhoso para mim, me emocionar com aquela dedicatória. Olhei para Ruth e vi lágrimas descendo em seu rosto. Ela me olhava quase com devoção, com um olhar que eu numa experimentara antes. Choramos silenciosamente, desarmados e entregues à saudade, cada um por seu motivo pessoal, comungamos um momento absolutamente nosso.

- Me desculpe. – Consegui dizer. – É que me afeiçoei muito a ele, um verdadeiro cavalheiro. Um amante inconteste de sua mãe.

- Não se desculpe. Estou feliz, emocionada por você ter se aproximado dele assim com tamanho desprendimento e dedicação. Só posso agradecer. Estou chorando também, num misto de saudade e de felicidade por ter encontrado um grande amigo de meu pai.

Confesso que tive um receio inicial, mas felizmente eu estava errada.

- Me pegou de surpresa.

- Meu pai me surpreendeu também, quando me falou de você. Eu não podia fazer idéia da amizade de vocês. Se ele não me tivesse dito, ninguém jamais saberia, eu creio.

- É, não saberia mesmo. Era nosso segredo que eu iria levar apenas comigo pela vida afora. Na verdade a amizade dele é uma das maiores riquezas que eu poderia ter em toda minha vida.

- Ele lhe dedicou igualmente esse valor. Por isso estou aqui, como uma emissária dele.

- Quem mais sabe desse encontro? – Eu quis saber.

- Ninguém. Ele contou a mim em particular e pediu-me que fosse nosso segredo. Ele até brincou, chamando de “triângulo afetivo”.

- Você deve ter achado meio maluco, tudo isso.

- A princípio sim, mas depois do que ele me falou, mesmo sem conhecê-lo passei te querer bem, querer te conhecer.

- Obrigado. Mas como saberia que iria me encontrar?

- Se não tivesse lhe encontrado aqui, nada disso teria justificado. Tudo não teria passado de um engano de meu pai. Mas você está aqui. E por conseqüência, tudo é verdadeiro, tudo é real.

- Você está bastante concisa em suas colocações.

- Sim, meu pai foi bastante convincente.

- Fico feliz e ao mesmo sem jeito.

- Tem mais coisas nesse envelope. Veja.

Então, voltando ao conteúdo do envelope, me deparei com um documento assinado pelo meu amigo Joaquim, com firma reconhecida em cartório. Tratava-se de autorização para publicar os escritos que anotei em nossas conversas. Eu acabara de receber autorização para publicar sua história.

- Ele pensou nisso! – Eu jamais esperaria por isso.

- Sim, ele pensou. Disse-me que vocês se encontraram inúmeras vezes e que você se prontificou em registrar essa trajetória, mediante promessa de que não as publicaria. Nossa conversa sobre você, foi saboreando um vinho que ele disse ter ganho de você. Bom gosto, por sinal.

- Sim, tomamos um bom vinho juntos. É verdade. Tenho comigo a maior história que você pode imaginar. Mas é um segredo que eu estou disposto a guardar comigo.

- Agora tem autorização para divulgar.

- É, tenho. Vou pensar nisso em outra oportunidade.

- Gostaria de ver. Pode ser?

- Pode, afinal está narrando sobre suas raízes.

- Seus outros dois irmãos sabem disso?

- Não, apenas eu. Preferi vir te conhecer antes de conversar com eles.

- Estou surpreso.

- Imagine eu: conhecer pessoalmente um dos maiores jornalistas do mundo, assim cara a cara! Já li inúmeras publicações suas.

- Obrigado.

- Quando posso ver os escritos alusivos a meu pai?

- Bom: eu viajo amanhã, fico fora do país por uns vinte dias. Depois estarei de volta e fico aqui mais uns trinta dias. Nesse tempo pode ser sim, lhe mostro o conteúdo que tenho.

- E como nos encontramos?

- Aqui. Como nos encontramos hoje. – Disse-lhe eu.

- Sem telefone, email, nada?

- Nada. Daqui a vinte e cinco dias estarei aqui te esperando, nessa mesma hora.

- Está bem. Não haverá problemas. Estarei aqui.

- Preciso ir, já é tarde. – Disse eu, me lembrando de compromissos pessoais.

- Eu também vou.

Então saímos daquele cemitério. Nos despedimos calorosamente e cada um seguiu seu caminho. Eu sabia que em poucos dias nos encontraríamos novamente. Era o tempo que tinha para organizar o material que tinha e juntar aos escritos que me foram entregues no mesmo envelope com a autorização de publicação.

E comecei a pensar naquela mulher. Alguma coisa nela me inquietava.

-Ruth!

Eu sabia que a encontraria em breve, como de fato passamos a nos encontrar com freqüência, inicialmente a pretexto de trocar idéias sobre o conteúdo do livro, mas ultimamente nem eu nem ela disfarça os verdadeiros interesses que surgiram e estão amadurecendo em nós.

Sabíamos que muito nos falaríamos, muitas coisas seriam ditas. Isso me alegrava. Algo novo começava a fazer sentido em minha vida.

Meu amigo Joaquim estava me pregando uma peça. Através dele eu estava começando a conhecer uma grande mulher.

Sim, com certeza publicarei o livro sobre a história de meu amigo. O farei com apreço, com carinho e devoção. Lembro-me bem, que em nossas conversas, ele se mostrava solidário, humanitário. A renda que obtiver dos livros, desejo investir na qualidade de vida de pessoas carentes. É minha forma de recompensar meu amigo.

Por outro lado, começo a perceber que através de Ruth, essa mulher encantadora, terei uma grande história pela frente. Dessa vez seremos nós os protagonistas.

Faria Costa
Enviado por Faria Costa em 19/11/2010
Reeditado em 20/07/2019
Código do texto: T2624442
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