Cauã

Andando pelas ruas de Bagé, resolvi dar uma passada na faculdade como de costume, e digo de costume porque aquilo lá já se tornou um passeio. Mas não é um passeio inocente, é uma câmara de tortura rumo ao suicídio coletivo, onde os professores assassinam as aulas e torturam os alunos com a inércia.

Olhei pra cara dos meus colegas e pra cara dos professores e saí porta afora sem dar motivo algum, diferente daquela menina espoleta de mais cedo, que brincava e sacaneava todo mundo, transbordando alegria.

No meio do caminho me senti em choque. (Prefiro não relatar o acontecido aqui por respeito à minha dor). Seguindo mais uns passos...

Sangrei.

E segui quadra após quadra entornando goles desse descompassado e molhado suor vermelho. Cansada de poesia, de lua, de beleza de sentimento. Andava em ziguezague pelas ruas, sentindo-as sujas, vazias (apesar de todo preenchimento) e me vi no meio de um lugar totalmente indigno de mim, cercada de pessoas egoístas e penetradas pelas piores vontades e prazeres que pretenderiam consumar, com ou sem a preocupação de maltratar alguém que ora por eles em casa.

Minha maquiagem escorreu sobre o rosto, formando uma penumbra pegajosa na volta dos olhos e,coitados dos meus olhos! A aparência e a expressão deles me penalizavam, eu não precisava olhar-me no espelho pra ver e sentir aquela opacidade triste e mortificada. Eu não sabia mais quem era, Cercada por uma despersonalização penosa, agora fazia parte de um sistema empoeirado, de pessoas necessitadas por prazer e auto flagelação, preocupadas em serem consumidas pela sujeira do universo,

E eu, mais um grão.

Minha identidade? Não valia nada.

Sentei na velha balança vermelha, era a única que sempre se mantinha num misterioso movimento, apesar da ausência da brisa noturna. Tirei um e outro galho de cima dela, que parecia estar me esperando, já contente por minha presença e infeliz pela minha razão.

Debulhei-me em sangue e fome de presença, vendo aquilo escorrer com precisão e falta de esperança, e já no último gole salgado que escorria eu notei que um pequenino se aproximava, e envergonhada eu limpei meu rosto ainda cuidando pra não sujar a camisa branca (esses detalhes me deixam feliz, pois ainda me importar com coisas fúteis me faz ver que ainda me importo em estar aqui). Ele sentou e olhou em minha direção.

Sempre tive medo da sinceridade das crianças, e esperava que ele me ignorasse, perguntasse o motivo das lágrimas, ou com de costume, ''porquê o teu cabelo é vemelho?''. Mas pra minha surpresa ele ignorou o fato e humildemente me sorriu com os olhos e pediu para que o balançasse. Levantei-me para satisfazer seu desejo, pois não se nega a criança alguma o direito de voar e de ser feliz, em segurança.

Balancei-o com medo, com medo que ele caísse, devagar e atenciosa, de repente me senti responsável por aquele menino, e tentei deixa-lo feliz, mas ele notou a minha preocupação e tremedeira. Pediu-me para parar, e disse que a balança sabia parar sozinha, achei aquilo engraçado e gracioso, colocou os pés no chão e me disse:

- Eu não tenho medo de balança.

É mesmo? Eu também não, adoro balanças, me deixam feliz!

- Eu gosto de cavalos também, sabia?

Tem um ali (e apontei para o cavalo feito de ferro)

Me sorriu e olhou pro cavalo novamente.

- Sabe, eu andei num esses dias, mas não tenho medo não. Já caí, mas gosto muito.

Hummm corajoso! Tenho medo de cavalo, sempre me agarro no pescoço deles quando subo em um!

E mais um gole de sorriso sincero. (Daqueles que vamos esquecendo e dando espaço para nossas caras fechadas e arrogantes)

E de aranhas, tu gosta?

- E u piso nelas! (e riu de si mesmo)

Esbaldei-me em pequenos sorrisos.

- Sabe, eu nasci “bem antes daqui” ali, perto de São Paulo. Lá é ruim, sabe? Não dá pra brincar, não tem espaço! (estalando os pequenos olhos de poucos anos) os carros mal têm onde morar! Eu tinha um carro assim (e mostrou o pequeno tamanho com as mãozinhas) e daí eu queria vender ele, ou trocar por uma moto, porque eu cresci e minhas pernas não cabiam mais dentro, olha só, são compridas né?

Eu sorria por ele e o compreendia como aquilo tudo que era tão grande, de repente se torna tão pequeno...

Quem sabe eu também pudesse perder meus medos, apesar dos tombos...

E no final de tudo eu percebi que eu me importava com aquela criança, que eu me importava com o que ele falava, que eu o compreendia, sua pureza e simplicidade, e de alguma forma aquilo me transformou.

Telefone toca.

Qual é teu nome?

- O meu nome é Cauã.

O meu, é Natália.

Natália Camargo Dutra
Enviado por Natália Camargo Dutra em 19/11/2010
Reeditado em 19/11/2010
Código do texto: T2623923
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