A verdade sobre andar de bicicleta
Verinha nunca deixou de viver, como muitos acreditavam. Ela deixou a vida bem guardadinha, num lugar seguro, para ser alforriada na primeira oportunidade. Criou os oito irmãos, os sete filhos e o marido, que morreu há cinco anos depois de três anos acamado. Foi criada pela mãe e pelo pai. A mãe não lhe permitia nada, porque não tinha o poder de permitir. O pai não lhe permitia nada, porque tinha o poder de não permitir.
E lá se foram 67 anos. Na verdade, não se foram. Ficaram todos com Verinha. Ela os escondia nas palavras engolidas e nos olhos que sabiam chorar para dentro. Nascida antes dos irmãos e nascida mulher, não pôde fazer muitas coisas e teve de fazer tantas outras. Ainda menina, Verinha aprendeu a amontoar trapos na cabeça para equilibrar um balde cheio d’água. Trabalhava o dia todo e, em boa parte, sob o sol. A secura de sua pele, com um tom que lembra terra ressequida, é um presente recebido do tempo, do trabalho duro e do sol. Aprendeu a cortar lenha e a cozinhar para ajudar a mãe, que morreria tuberculosa antes do segundo aniversário do caçula. Aprendeu, então, a ser a mãe de todos. Tinha onze anos – não se esquece. Também não se esquece que precisou aprender muito.
Por ter aprendido tanto, Verinha não aprendeu o que gostaria. Admirava as letras garranchosas nos cadernos dos cinco irmãos, que estudaram pouco, o suficiente para ler, escrever e fazer contas. Mas nem garranchos, ela e as três irmãs podiam fazer. “Colégio é pra homem”, explicava o pai. E o eco do “colégio é pra homem” perseguiu os ouvidos da Verinha por anos. Casou-se aos 16 anos e continuou ouvindo que “colégio é pra homem”. Mas lá no porão de sua consciência, ela sussurrava rebelde: “colégio é pra muié também”.
Os filhos foram se casando, um a um. O marido continuou sendo criado por Verinha. Recebia o prato de comida, a roupa passada, a casa limpa e o calor dos afagos noturnos da exausta Verinha. Também recebia afagos fora de casa. Quando foi acamado pelo derrame, tornou-se um bebê nas mãos da Verinha. Ele gostava dela – assim dizia, porque assim lhe caía bem dizer. Antes do estado vegetativo, gabava-se da sorte de ter se casado com uma mulher que vivia para a família. Ela gostava dele – assim dizia, porque não tinha mais o que dizer. E chorou muito sobre o caixão – não havia muitas possibilidades para assim chorar.
Todos criados, Verinha decidiu, então, criar a si mesma. Visitou o depósito de sua vida e lá encontrou – bem empoeirados, é verdade, mas estavam lá – todos os “pode sim” subversivos, respondidos tácitos aos “não pode”. O primeiro deles, ela liberou eufórica dois meses e pouco da morte do marido. Os filhos estranharam aquela senhora miúda, de cabelos alvos e pele surrada, metida em um par de calças. “Mãe, o que isso?! Nunca vimos a senhora de calças antes!”, admiraram os filhos desconhecendo uma Verinha sem grilhões. Os netos amaram o novo visual da avó. Fez outros experimentos: foi para os shorts, recusou as blusas regatas e se encantou com os moletons.
Os filhos se preocuparam, mas compreenderam. Tinham certeza de que a mãe, tão submissa e sóbria, tivesse apenas surtando temporariamente por causa da morte do marido. Mas Verinha mergulhou, de novo, dentro de si e emergiu salvando outro “pode sim” calado. Seus olhos brilhavam. Sozinha, foi à escola do bairro pedir informações sobre matrícula. Até deu entrevista a um repórter que buscava uma boa história sobre educação. Com pouco tempo e com muito esforço, ela fez garranchos como os dos irmãos. Dedicou-se aos estudos, passou noites e noites sobre seus cadernos e livros e começou a desenhar letras tão bonitas que provocavam um “ooohhh” nos netos. Orgulhosa de dar a única resposta verdadeira às pessoas de sua vida, Verinha começou a escrever cartas para parentes distantes, a ler bulas de remédios, embalagens, revistas e livros. Adorava os infantis. E os netos adoravam ouvir as histórias da avó, que aprendeu a ler e escrever. Certa vez, parou no meio de uma história e deixou rolar uma lágrima que, por anos, derramou-se para dentro. “Por que você tá chorando, vó?”, perguntou a netinha. “Porque colégio é pra mu-lher tam-bém”, respondeu silabando, enfática e sorridente. A netinha não entendeu, mas sorriu.
Vez e outra, Verinha ensaiava dar vida a um desejo hibernado aos 12 anos. Ela se lembra como se tudo tivesse ocorrido ontem. Depois de ter limpado a casa, varrido o quintal, dado banho nos pequenos, alimentado as galinhas, feito o jantar e recolhido a lenha para o dia seguinte, ela se sentou exausta num banco de madeira e ficou admirando a bicicleta do pai. Ele a usava apenas para ir à cidade. Na roça, não precisava dela. Tornou-se criança por um instante. Pulou na bicicleta e tentou pedalar. Obviamente, caiu. Mas caiu tão prazeroso que riu como há muito não ria. A risada e a algazarra eram tão boas que os outros também quiseram. Brigavam para ter um pouco daquela diversão. Ela pôs ordem e cada um caía por vez – ninguém conseguia dar duas pedaladas seguidas. O pai, exausto do trabalho e da vida, chegou bem no momento em que Verinha montava na bicicleta. O tapa pesado quebrou dois dentes da menina. Os irmãos também apanharam. E todos culparam Verinha pelos castigos. Por muito tempo, foi olhada atravessada pelos irmãos. Nunca mais andou de bicicleta – coisa de homem ou de mulher da vida, ensinava o pai enquanto batia. Os irmãos homens foram crescendo e aprendendo a pedalar. Apesar da dor da surra, ela resmungava dentro do refúgio, onde hibernou seu desejo, que mulher também podia andar de bicicleta. Cochichava muda para si mesma e chorava sem lágrimas.
Verinha economizou o dinheiro da pensão e comprou à vista uma bicicleta verde com cestinha na frente. “A netinha tá de aniversário?”, quis saber a vendedora, mostrando-se simpática. “Doze anos”, quando pensou já tinha respondido. “Dê parabéns pra ela”, emendou a vendedora, sem fazer ideia da profundidade da resposta da Verinha. Enquanto empurrava, meio desajeitada, a bicicleta, Verinha ria, de novo, das quedas dos irmãos e da bagunça que faziam. As pessoas jamais entenderiam as razões das risadas tímidas de uma velha encurvada, usando moletom lilás reluzente e empurrando uma bicicleta. Um homem, que passou por Verinha, chegou a explicar ao filho curioso: “quando as pessoas ficam velhas começam a caducar”. O menino achou caducar legal e pediu para o pai caducar de vez em quando.
Nos primeiros dias, Verinha escondeu a bicicleta dos filhos. Precisou de muita coragem para arriscar a primeira pedalada depois de 55 anos. Olhava a bicicleta, esfregava as mãos no rosto e chorava baixinho. Em algumas noites, permaneceu acordada, conversando com a vida e contemplando a bicicleta tão verde quanto a de seu pai. A diarista, que aparecia três vezes por semana e que era remunerada pelo filho mais velho da Verinha, sabia guardar segredo. Não contou para ninguém sobre a nova aquisição. Quando se encheu de coragem, Verinha pediu à diarista para segurar a garupa e a soltar quando pedisse. “Vai, pode soltar”. Deu três pedaladas e caiu. Deu risada e gemeu de dor, muita dor. A outra mulher, desesperada, levantou a Verinha e chamou a ambulância. No hospital, os filhos estavam nervosos. Ouviam, aflitos, a avaliação séria do médico: “Será necessária intervenção cirúrgica”. Verinha, com o fêmur esquerdo fraturado, olhava a todos como uma criança flagrada fazendo arte. “A senhora está passando dos limites, mamãe”, disse, com voz carinhosa, mas cheia da razão, a filha caçula. “Podia ter morrido”, completou outro filho. “Bicicleta, nunca mais!”, sentenciou o médico bigodudo, com uma prancheta sábia nas mãos e todo de branco. A brancura do uniforme cegou, por um instante, Verinha. Ela viu, nitidamente, os irmãos apanhando e o pai babando de raiva, com o chicote nas mãos. “Bicicreta, nunca mais!”, dizia ele.
Só com muita súplica da Verinha que os filhos consentiram que a bicicleta ficasse na casa dela. Permaneceu internada por três meses. Recebeu alta e continuou sem poder andar. Fez várias sessões de fisioterapia. E sempre ouvindo aquelas vozes mansas e irritantes: “Que coisa, dona Verinha! Não faça mais arte, hein!”. Depois da cadeira de rodas, vieram o andador, a muleta e, por fim, a bicicleta.
A recuperação era lenta demais para o tempo que Verinha dispunha para fazer viver seus desejos. Sem que ninguém soubesse, nem mesmo a diarista, Verinha começou a se equilibrar na bicicleta antes mesmo de deixar as muletas. Mesmo sentindo agulhadas lá no fundo dos ossos, ela subia, teimosa, na bicicleta e se firmava, colocando uma das mãos na parede. Ficava assim parte das noites e boa parte dos dias enquanto não apareciam as visitas. Seu alarme era o barulho do portão de ferro. Pedia para as visitas esperarem – em geral, algum filho com alguns netos, um e outro vizinho e a diarista – para que tivesse tempo de encostar a bicicleta na parede e abrir a porta. Com o tempo, aprendeu a se equilibrar por alguns segundos sem a ajuda da parede. O passo seguinte foi pedalar, devagar, no próprio quarto. Como o espaço era pequeno, não podia pedalar muito, mas pedalava o suficiente para seu propósito. As agulhadas nos ossos eram ofuscadas pelo desejo. A dor forte era frágil para a velha criança que aprendia a andar com as asas que tinha nas pernas.
Naquela véspera de Ano Novo, todos puderam ver uma velhinha alforriada montada, ofegante, numa bicicleta verde e usando um belo moletom lilás. Na cestinha, havia álbuns com fotos da mãe ao lado do pai, do marido, dos filhos desde bebês, dos netos e da própria Verinha. No verso de cada foto, havia os nomes das pessoas, com letras bonitas, desenhadas recentemente. Desequilibrava-se, ia de um lado a outro da rua, mas não caía. Não cairia nunca mais. Ao chegar perto da casa do filho mais velho, onde aconteceria a festa de réveillon, Verinha percebeu que as pessoas se aglomeravam. Havia parentes de todas as partes, amigos e vizinhos curiosos. Os filhos iriam ralhar com a mãe, mas suas vozes foram vencidas pelos aplausos. Todos aplaudiam. Verinha não cabia em si. O grito acorrentado foi se soltando, virando-se para a entrada da caverna, atravessando anos de silêncio até explodir na boca de Verinha como explodiria na boca de qualquer criança.
Os aplausos foram findando e os gemidos de Verinha, tornando-se mais audíveis. A dor era um oceano quando Verinha desceu da bicicleta com a ajuda de algumas pessoas. Mas também era um pingo diante da vida acordada antes da morte.
Vera se sentou exausta num banco de madeira e ficou admirando a sua bicicleta. Deu uma gargalhada de menina. Era dona da situação. Não precisava ter medo. Bebeu a água trazida por um dos filhos e chamou a neta, que estava prestes a completar doze anos. “É sua, minha filha”, apontou para a bicicleta. “Mas vó, essa bicicleta é sua!”. Sentindo-se totalmente Vera, plenamente Vera, a avó respondeu: “Não, é pra uma menina de doze anos”. A neta olhou para seus pais para ter a permissão. Pai e mãe entreolharam-se e assentiram com a cabeça – tinham, os dois, o poder de permitir. A neta abraçou a avó. Os filhos enxugaram os olhos e conheceram a mãe pela primeira vez. Vera olhou para si mesma e se sentiu tão verdadeira quanto seu nome.