Regresso ao Passado

Quando era mais jovem Marco ficava a olhar para ela como se, no mundo, nada mais houvesse digno de atenção. Gostava do seu jeito balançado de andar, dos cabelos encaracolados e, sobretudo, do olhar azul, tão azul que a todo tempo poderia escapar-se-lhe do rosto e passar a ser um rio, uma cascata, um pedaço de céu, imaginava. Sentia que não saberia o que fazer ou dizer se, por hipótese remota, ela o olhasse com outra maneira de ver, diferente. É duro ter dezoito anos, saber já tudo sobre o amor e o sexo, estar apaixonado daquele modo obsessivo e não ter o ar suficientemente maduro para ser levado a sério, para, ao menos, ser visto quando emitia as suas mensagens mudas, escaldantes.

Moema era estrangeira e trabalhava a dias em casa dos Gomes de Freitas. Tinha vinte e quatro anos, viera de Angola órfã e ainda morava com os missionários que a recolheram criança e a trouxeram adolescente. Fazia este tipo de trabalhos por estar desempregada mas poderia ensinar gastronomia, puericultura e contabilidade por terem sido áreas privilegiadas na aprendizagem com os padres de S. Francisco.

Naquele dia achara o rapaz impertinente e chegou a pensar que ele a despia com os olhos, que a violentava com a sensualidade pouco reprimida, por mero divertimento. Não era a primeira vez que a espiava, lhe media a largura dos quadris, o alçado da coxa e o movimento dos peitos quando se empenhava na lida da casa. Levou a tarde a corar e a fazer de conta que não via.

De todo o modo, o raio do rapaz mexia com a sua vontade. Apetecia-lhe bater-lhe para evitar chegar-se a ele, segurar-lhe a cabeça, beijá-lo até perder o fôlego, apalpar-lhe as partes, puxá-lo para um lado qualquer e entregar-se à volúpia do sexo. Ela também era de carne e osso e, ao que percebia agora, não lhe morreram os desejos com a castidade. Mas, o melhor, pensou, será deixar de vir trabalhar aqui. Poupo sarilhos e evito problemas com os pais do moço, disse para si mesma, incomodada.

Voltou, portanto, a cuidar dos idosos no Lar de Santo Estêvão e a ficar, como anteriormente, menos livre para devaneios. Era a vida. Afinal, desde muito nova que se capacitara que a felicidade não é para toda a gente. A única tentativa que fez para sair daquele rigor, da pressão dos missionários, correu mal. A sua inexperiência levara-a a sair da alçada dos padres e a fugir com um dos rapazes do Seminário Menor. Voltou grávida e miserável. Felizmente a criança não vingou e ela estava agora mais consciente da necessidade de ter cuidado com os homens e de acatar ordens para não voltar a sentir o que passara de fome, solidão e doença, nos dois anos que durou a aventura. Em Marco e nas suas provocações eróticas não voltou a pensar.

Soube, mais tarde, que o jovem estava na Universidade, em Coimbra, mas nem lhe interessaram os pormenores. Deve estar um homem feito, pensou, antes de dar o assunto por encerrado. Recordara-o só por ter recebido convite para tratar do pai que, entretanto, sofrera um avc e estava muito dependente. Em três anos muda tudo na vida, na formação e no crescimento das pessoas. De resto ele estava em Coimbra, não via por que não aceitar o serviço que desempenhava bem e era optimamente remunerado.

Passou o velhote a ser, consequentemente, medicado, alimentado e lavado por Moema que se desvelava em cuidados e atenções para merecer a graça de Deus e o carinho da dona da casa. Para todos era quase uma santa. Na verdade acabou por fazer tudo na vivenda dos Freitas. Cozinhava, lavava e engomava a roupa, cuidava do doente e fazia as compras. Decidiram que também passaria a pernoitar lá para poder desempenhar, ainda melhor, o seu trabalho. Não se opôs.

Chegava tão estafada à cama que adormecia imediatamente, muitas vezes sem tempo para um Padre Nosso ou uma Ave Maria. Só nos sonhos, madrugada alta, se compensava. Ele aparecia-lhe como um anjo bom, cheio de graça e de harmonia mas, no momento a seguir, não tinha nem túnica nem asas. Mostrava-se, então, com tudo à vela, provocante, aceso. Nem licença lhe pedia para nada e levantava-lhe a saia, ávido e trocista, arrancava-lhe a roupa íntima e ficava o resto do sonho em ordinarices inqualificáveis. Dava-lhe raiva e prazer aquela entrega animalesca e tremia só à ideia de que ele adivinhasse o despudorado dos seus temas oníricos.

Um dia, por ocasião das férias do Natal, o rapaz voltou. De capa e batina, todo enfeitado de emblemas e com um sorriso franco a iluminar-lhe o semblante, parecia outro. Moema achou-o forte, entroncado e bonito. Mais homem. Trocaram os cumprimentos da praxe e cada um procurou evitar o outro como forma de fomentarem um bom ambiente na família. Nos primeiros dias tudo correu como previsto. Viam-se às refeições, cumprimentavam-se friamente, evitavam qualquer tipo de aproximação.

Mas…ninguém manda no coração dos outros, nem nos sonhos, nas imaginações que acodem ao cérebro até de gente avessa a romantismos ou prazeres carnais. Com eles não foi diferente. Moema imaginava-o a galgar a a sacada do seu quarto, a afastar o reposteiro, a aproximar-se da cama, nu, de sexo em riste, a meter-se na sua cama… Sentia um pavor que a gelava e a deixava sem acção. Acordava suada e uma noite houve em que chegou mesmo a gritar, atraindo a freira que fazia a vela. Prostrada, febril e incapaz de assegurar o serviço na globalidade, outro remédio não teve se não aceitar que Marco ajudasse no que lhe fosse possível.

E o moço, aparecia para colaborar no banho, na alimentação e, até, na mudança das fraldas do Pai para suavizar as tarefas de Moema. Mas, via-se bem, o que ele mesmo queria era ficar perto dela, tocar-lhe nas mãos, olhá-la intensamente. O antigo amor retomou espaço no seu coração, no peito, no corpo todo. Dir-se-ia que ela era um estímulo excessivamente violento para a capacidade de controlo que tinha. Dava consigo a inventá-la nua, mexendo-se para efectuar o serviço, em poses obscenas, a convidá-lo para intimidades que fariam todo o sentido em amantes sedentos e não em gente que mal se falava. Acostumara-se a mirá-la sem reservas e isso perturbava a mulher que não sabia já o que fazer para evitar ruborizar-se, emocionar-se ou demonstrar o quanto ele a atraía também.

Se houver inferno, será muito parecido com esta vontade de fugir e de ficar, de se aproximar mas ter medo, de inventar ocasiões para o ver e, ao mesmo tempo, fingir que o não enxergava ao canto da sala, a manejar a sonda ou a virar o velho na cama. Bem demais sabia ela, avaliando pelos olhares, o que ia na cabeça de Marco, evidentemente leviana.

E… as férias acabaram logo a seguir. O Rapaz ainda se demorou mais dois dias sob o pretexto da recuperação de Moema mas, com Frequências à porta, regressou a Coimbra, deixando sinais, lembranças e recados nos lugares mais estranhos para toda a gente mas de visitação incontornável para quem tivesse, como ela, de gerir tempo e lugar, gente e sã e doente.

Logo ao primeiro toque no desinfectante, lhe caiu um recadinho escrito em letra pequena e corrida, a referir que, no paraíso, todas as pessoas se beijavam na boca e que, os que se amavam, dilatavam o passeio dos lábios a outros lugares. Trazia, em desenhos naifs, a ilustração pornográfica da afirmação. No lavatório, enrolado na base da sua escova de dentes, um coração gordo tinha dentro, nada mais, nada menos, que uma foto de dois amantes a copular, com um dito absolutamente vulgar: estes parecem bichos mas até os bichinhos gostam.

Outros mimos no género foram sendo descobertos ao longo dos dias seguintes impedindo-a de se libertar daquele biltre que, sabe-se lá por que razão, metera na cabeça que a havia de possuir com ou sem a seu acordo. Desespero, raiva, um ódio que se misturava a outros pensamentos, deixavam-na à beira da fúria. Até quando aguentaria os desaforos do rapazote que, afinal, ainda não desenvolvera o miolo? A história mudou de repente quando o senhor Freitas faleceu, uns dias antes da Páscoa. Ainda assistiu ao funeral e ainda teve de sofrer a pressão do jovem Marco oscilando entre um genuíno desgosto pela morte do Pai e a lascívia do costume. Ousou dizer-lhe que agora seria ele a mandar e que tinha muito trabalho lá para lhe dar, se ela quisesse. A frase, secundada por um inesperado enlace, terminava o recado. Se ela quisesse… e mordia-lhe o lobo da orelha, passava-lhe a mão pelos seios, apertava-lhe as nádegas com uma sofreguidão doentia. Teve de gritar para se ver livre da situação e sair, de vez, daquela casa.

E os anos passaram entre trabalho precário e regressos cíclicos ao Seminário onde mantinha um pequeno quarto ao seu dispor. Aos trinta e três, qualquer mulher solteira pensa que o amor é uma miragem e a possibilidade de refazer a vida um mito. Cai a esperança, desce a auto-estima e cresce a vontade de ser livre de censuras, grilhetas e ditos. A ideia era partir para longe, recomeçar noutro lugar, se possível arranjar um companheiro ou, na melhor das hipóteses, casar e ter filhos. Por isso voltou a Angola e, por acaso, ao antigo trabalho no Hospital do Huambo. Tomou posse como enfermeira chefe e alojou-se em casa de gente amiga no Bairro Académico, a cinco minutos do trabalho. Pela primeira vez em muitos anos estava em paz, livre de fantasmas, quase feliz.

Chamada ao gabinete do Director, para tomar conhecimento da reestruturação dos serviços e para lhe ser apresentada, Moema aguardou que a freira a mandasse entrar e, quando por fim se achou em frente à secretária, ouviu, nitidamente, uma voz que lhe dizia ao ouvido: Sabia, Moema, que no paraíso, as pessoas se beijam na boca?

FIM

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 17/11/2010
Reeditado em 24/03/2011
Código do texto: T2619876
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