Raça e Preconceito
Ficha de Identificação
 
Ele estava nervoso com seu problema de saúde, mas não imaginava que ia começar a padecer já da sala de espera do consultório, diante da secretária, na hora de identificá-lo.
 
É comum o paciente dar seus dados comuns, como a idade, cor, profissão, nacionalidade, naturalidade e estado civil. Por incrível que possa parecer, isso adianta muito o trabalho do médico durante um atendimento Em alguns serviços, se for relevante, até a religião é necessária.
 
Isto não rotula ninguém na medicina, mas ajuda ao médico em várias situações e casos - antes, durante e depois da consulta. Deviam ser muito normais as perguntas e a respostas também, mas de vez em quando até o paciente se enrola. Por exemplo, no estado civil. É um negócio horroroso. Começam a contar histórias, dizendo que são casados, mas se separaram, ou que vivem ainda com o seu par, mas não transam; ou que são mais ou menos e por aí vai...
 
Mas o que confunde mesmo é a cor... Já começa pelo preconceito da atendente, ao observar que a pessoa ter cor parda. A coisa piora quando é um índio ou indiano. Isto, numa cidade grande, onde somos misturados (racial ou socialmente), pesa pra caramba... Todos ficam cheios de pompas pra determinar a cor do paciente, como se o fato de não ter a etiqueta branca fosse algo constrangedor...
 
Chega sr Roberto Campos, diretor de uma companhia de automóveis importados, ao consultório do dr Cyro, ortopedista muito conhecido em um bairro de classe média e classe média alta... Se fosse um médico lá do suburbão, talvez não houvesse tantas papas na língua...
 
A secretária pergunta aquilo que não sabe (idade, naturalidade estado civil, função profissional), mas na hora de escrever a cor, começa a ficar difícil. No caso do sr Roberto Campos, mais ainda, que é mestiço, filho de branco com preto e otras racitas más. A cor dele dá inveja a qualquer loira de Ipanema, que compra mil bronzeadores pra ficar igual a ele, mas que provavelmente não gostaria de ter a sua cor natural, nem o cabelo dele...
 
A secretária começou a ficar meio na dúvida quando àquele senhor. Ele disse que tinha um cargo empresarial, e na hora de anotar sua cor, colocou "classificação" “moreno”...
 
O médico, ao receber a ficha, ficou de mau-humor:
 
- “Minha filha, moreno sou eu, que acabei de vir de férias de Búzios. Vá lá fora, observe a cor do paciente e coloque se é branco, preto, pardo ou amarelo!”.
 
- “Doutor, o senhor já viu alguém amarelo? Eu só vi gente assim quando tinha hepatite!”, disse ela, meio confusa.
 
- “Faz o seguinte: se a pessoa tiver olho esticado, é oriental. Então é amarelo, ok?”, explicava o médico.
 
- “Ué! Então eu estou com um problema lá fora, porque aquele cara é marrom e tem olho esticadinho...”, ela se justificava.
 
Ao retornar à sua sala de atendimento, ela resolveu perguntar ao paciente: “O senhor tem que cor?...”.
 
O paciente já tinha observado toda a movimentação e não conseguiu conceber que os seus dados fossem tão mais importantes que a dor que sentia na coluna... Assim, respondeu prontamente, pra acabar com aquele martírio:
 
- “Sou preto”.
 
A secretária disfarçou, coçou o nariz, e completou: “cor negra”.
 
O senhor observava a indecisão da funcionária e viu o que ela escreveu. Daí retrucou:
 
- “A senhora, por favor, pode corrigir minha cor? Antônimo de branco é preto. Eu não sou negro. Negra é a poesia de Augusto dos Anjos. Eu sou preto mesmo, certo? Tendi para o lado de meu pai, negão. Minha mãe, uma italiana muito da esperta, só me deu de presente esta beleza mediterrânea, se bem que meu bocão é da minha avó Tupiniquim... Mas como aí não tem furta-cor, pode colocar preto mesmo. O que eu quero mesmo é acabar com esta dor ciática, que tanto branco ou preto tem igualzinho...
 
Como ela não sabia quem era Augusto dos Anjos, deu uma escarradinha disfarçada para o lado, bem suavemente, e anotou “PRETO”, já contando com uma bronca do chefe...

 http://www.youtube.com/watch?v=PSvnIwg0lEA&feature=fvst

Texto e fotografia de Leila Marinho Lage
Rio, 15 de novembro de 2010
http://www.clubedadonameno.com

Leila Marinho Lage
Enviado por Leila Marinho Lage em 15/11/2010
Reeditado em 28/11/2010
Código do texto: T2617412
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