Amores Virtuais
Agradou-lhe a foto do perfil e aceitou-o como amigo. A conversa era a normal para gente que não se conhece mas, foi ganhando crescente intimidade. Puxava por ele e desafiava-o mas, sempre, como se fosse mera inexperiência. Ele respondia, para aconselhar, induzir e cultivar aquela aproximação que os parecia divertir a ambos. Diziam de vontades, faziam jogos de palavras com muitas metáforas, ampliavam, paulatinamente, o prazer dessa permuta em belos nacos de prosa apelativa e livre. Cuidada mas livre. Imaginavam o que fariam juntos, os gostos recíprocos, as urgências. Da parte dele com rasgo e ousadia, do lado de Natália com falso espanto e muita reticência a fingir pudor.
Agora, olhava tudo o que ele referia, reparava nos pormenores dos escritos, copiava-os para os analisar, esperava por ele no mensager e contactava-o muitas vezes por dia. Parecia-lhe que assim conseguia suprimir o vazio existente entre eles e deixar viável a materialização do corpo. Sim do corpo. Vira fotos dele na praia, pusera-se a imaginar e juntando as imagens às palavras, aquele Diogo cabia, maravilhosamente, nos seus projectos e nas suas aspirações. Era bonito, sensual, bem-humorado e muito irreverente. Enfim, tinha aquilo que achava desejável num homem a valer a pena. Até o facto de ter trinta anos confessados, lhe convinha.
Merecia-o, pensava, enfrentando o espelho, observando as ancas, elevando o seio. Tinha trinta e quatro anos feitos em Janeiro e uma vontade louca de recuperar o tempo perdido. Estava muito bem e ganhara dimensão, carácter, cultura e, sobretudo, experiência . Afinal tudo o que não tinha e que tanta falta lhe fizera nas relações anteriores. Agora seria diferente. Nada como marcar as linhas mestras de uma vida em comum e não esquecer de ressalvar áreas de domínio próprio, zonas de intimidade, respeito pelas diferenças e comunhão em tudo o que cimenta uma casamento. Sim, desta vez queria uma ligação oficializada., assumida, considerada pelos pais e irmãos, além da vizinhança.
O que faltava vencer ganharia em breve, pensou. Começaria por fazer mais perguntas, dar mais referências suas, dizer que estava na altura de assumirem a atracção que sentiam um pelo outro mostrando-se num encontro. Antes disso, no entanto, tinha de deixar a conversa de jovem de vinte anos, ingénua, personagem que, sem citar a idade, assumiu muitas vezes e começar a aproximar o discurso da sua própria realidade. Estava arrependida das mentiras com que enfeitara os diálogos mas, ao tempo, o que mais lhe apetecia era torpedear o real e viver a dimensão que a vida lhe negara. Desafogo económico e sucesso profissional faziam parte das suas mentiras mas ela acreditava que um homem tão realizado e com dinheiro, nenhuma questão faria se ela não os tivesse. Depois, como nunca se viram, a não ser em fotos pouco nítidas, não teria tanta importância a idade que ela nunca lhe dissera.
Que farias, Diogo, com uma mulher madura, bonita e saudável, perguntou assim que a ligação se estabeleceu. E ele, de imediato, afirmou: tudo. A seguir , como que arrependido da ligeireza, acrescentou: mas só se tu não existisses. Faz-me outra pergunta. E ela perguntou. O jogo da verdade foi ganhando vez, substituindo o tom rosa das conversas e foi definindo um recorte diferente para ambos. Havia um certo desencanto da parte dele mas um renovado interesse de Natália, agora disposta a uma maior tolerância. Em nenhum momento lhe passou pela cabeça que o Diogo poderia não ser o Apolo das imagens nem ter a estabilidade financeira que apregoava.
Na sessão seguinte sugeriu que poderiam ver-se na web cam para os acertos finais e sugeriu, ainda, que essa sessão fosse de respostas verdadeiras obrigatórias de parte a parte, espécie de prova de fogo para o valor do afecto que sentiam um pelo outro. E ele foi evasivo. Que sim mas não já, que não gostava de mostrar-se através da câmara, que se intimidava com a frieza das perguntas com que ela parecia querer sitiá-lo e, finalmente, que não apreciara nada as últimas conversas. Acrescentara que, para uma mulher tão jovem, havia muita informação com a qual ele não contava e que, para ser franco, não gostava da ideia de ter passado por parvo tanto tempo.
Desfez-se Natália em desculpas, chorou amargamente, confidenciou o que lhe pareceu inofensivo sobre os reais parâmetros da sua vida e acabou a sessão convencida de que ele a entendia, a desculpava e que continuava firme na convicção de que ainda seriam felizes juntos. Mas o facto é que a conversa mudara de tom. Dava-lhe a sensação de que ele perdera o anterior toque amistoso e enveredava agora por conversas de cariz eminentemente sexual a raiar a depravação. Achou que era uma fase e, com aquele protagonista, até a mais forte grosseria lhe pareceu tolerável.
É curioso constatar que, depois de mentir tanto, Natália nunca imaginou que ele pudesse fazer o mesmo e acreditou na veracidade das coordenadas que lhe deu para o encontro, no lencinho amarelo que colocaria no bolso do casaco, na mesa em que procuraria situar-se para que o visse sem esforço… Avançou por entre dezenas de mesas, de rosa vermelha na mão, e percorreu a enorme esplanada em vários sentidos, várias vezes. Sentou-se, finalmente, para descansar e pediu um refrigerante. Estava tensa, e nervosa, alheia a tudo o que não fosse a zona da entrada. Deve ter uma boa razão para o atraso – pensou. Ficou assim muito tempo, até sentir que alguém puxava a cadeira e se sentava à sua frente, depois de um breve cumprimento. O homem, a raiar os quarenta e cinco, calvo, sobriamente vestido e com um ar respeitável pediu que não se levantasse porque vinha da parte do Diogo e tinha uma mensagem para ela. E Natália, ainda incapaz de raciocínio, ficou para o ouvir.
Olhe, Natália, o Diogo chama-se António Navarro, não é Administrador de coisa nenhuma e trabalha numa oficina de automóveis no Saldanha, em Lisboa. Pronto, agora sabe o principal, disse o homem muito serenamente, vendo as lágrimas começarem a rolar-lhe pela face enquanto ela torcia as mãos prestes a explodir de frustração. Sabe, amiga, além do que já lhe contei, acrescento que o homem tem mais de quarenta anos e, acima dos trinta, ele acha que as mulheres são para usar sem perdas de tempo e sem o romantismo que dedica a virgens ansiosas.
Natália quis retorquir mas as palavras não saiam da garganta, os pensamentos estavam descoordenados e uma forte dor de cabeça impedia-a de levantar-se e sair ou de fazer ali uma cena agressiva. O silêncio dela foi sendo aproveitado pelo homem que disse estar de consciência descansada por saber que ela mentiu sempre sem se preocupar com mais nada. Era ele o Diogo, nome que achava lindo para pseudónimo, gostava de ter parado na sua idade gloriosa e, só por isso se afirmava com trinta anos e, finalmente, não desmentia que adorava ver gente jovem e de tudo fazer para se aproximar o mais possível da juventude. A sua vida, porém, andava à roda de gente mais velha e concluiu que retirava muito prazer do convívio com mulheres maduras, como ela. Compromissos não queria e filhos também não.
Estava pronto para abrir um novo capítulo da história comum e propunha-lhe que começassem uma aproximação verdadeira de sentido e real de conteúdo. Sim, que menininhas no computador de nenhum modo são superiores a belas mulheres trintonas ao alcance de um gesto fora dele, concluiu. Como ela não respondia, não o olhava, não parecia estar a ouvi-lo, António Navarro, o mecânico, despediu-se e prometeu deixar, em e-mail, o que lhe propunha. Queria ser seu amigo. Depois disso, levantou-se, olhou-a uma vez mais e saiu. Natália ficaria ali até ser convidada a sair à hora do fecho da esplanada.
Não sabe como chegou a casa nem como passou a noite. Acordara tonta, nauseada e aos vómitos… Não voltaria a abrir o computador por muitos dias. O trauma fora grande e a recuperação lenta. Custa sempre muito a morte de um sonho, a perda irreparável de uma ambição, o confronto com a realidade agreste que, bem feitas as contas, nunca deixara de ser a sua. Mas um dia, de novo ao computador, retomou a frequência de salas virtuais de convívio e entrou em conversa com alguém a quem, retomando um antigo fio de meada, perguntou: você não é o António Navarro? E a resposta, celeremente digitada, chegou: Já não, Natália, voltei a ser o Diogo.
FIM