A CALCINHA VERMELHA
“Envie seus escritos e participe da antologia da Editora Mundo Livro”.
A chamada no site de literatura saltou aos olhos de Bia, como se estivessem em neon. Imediatamente uma excitação percorreu seu corpo de alto a baixo.
- É neste que eu vou!
Bia imediatamente pegou o pen drive e escolheu seu melhor conto. Leu o regulamento dez vezes e concluiu que seu texto atendia ao edital. Mas ela tinha que correr. O prazo para enviar os contos se encerrava à meia noite.
O sonho secreto da Bia era ser escritora. Mas não uma escritora qualquer. Ela queria ser uma escritora de sucesso, cujos livros fossem transformados em grandes produções de cinema, assistidas por milhares de pessoas. Contudo sua realidade era outra. Bia tinha noção de que precisava melhorar muito até chegar a um nível razoável. Até já tinha participado de outros concursos literários, mas nunca classificara um conto que fosse. Era quase desanimador, mas mesmo assim Bia não acreditava que fosse uma escritora tão medíocre.
Seu pseudônimo era Maria Flor. Nunca tivera coragem de colocar seu nome verdadeiro. Apesar da ânsia em querer fazer sucesso, morria de vergonha das coisas que escrevia. Principalmente porque a maioria dos seus textos tinha cunho erótico. Se o José Mário soubesse das suas fantasias secretas, era capaz de pedir divórcio na hora.
Naquele dia o almoço do José Mário saiu pela metade. Ele simplesmente não entendeu por que sua mulher lhe apresentou um macarrão instantâneo com arroz. Era algo relacionado ao computador. Bia estava grudada na tela desde que ele havia chegado.
- Você não vem almoçar? – berrou José Mário, aborrecido, remexendo as panelas e constatando que passaria fome.
E ela respondeu lá de dentro:
- Mais tarde! O Dudu pediu para que eu o ajudasse a terminar um trabalho de ciências!
José Mário apareceu na porta do quarto, sem desconfiar de nada.
- Por acaso ele não tem mãe para ajudar?
- José Mário! – e Bia se voltou para ele, furiosa pela interrupção. Ela fazia os últimos ajustes no conto erótico que pretendia inscrever no concurso – Minha irmã recém ganhou nenê. Será que você poderia ser um pouco mais compreensivo?
- Vai ser todo o dia isto? Eu vou comer macarrão de pacote até quando?
- Se você não está satisfeito, compre comida pronta. E me deixe em paz. Não quero me desconcentrar.
Sem alternativa, José Mário voltou para a cozinha, onde comeu a massa e o arroz em pé, sob protesto. Quando estava para sair para o trabalho novamente, chegou na porta do quarto e disse para a esposa:
- Bom, vou indo.
- Tchau, Zé.
- Se eu me atrasar um pouquinho é que fui pro bar com os rapazes – José Mário queria provocá-la.
- Tudo bem – respondeu Bia – Bom proveito.
Os olhos dela não se desgrudaram da tela e José Mário – prevendo que seu sobrinho tiraria uma grande nota no trabalho de ciências – pegou a pasta e foi embora.
Apesar de todo o empenho da Bia, quando ela releu seu conto erótico pela quinta vez, pressentiu que não estaria entre os quinze classificados para participar da antologia. O título não ajudava muito. “Calcinha Vermelha” não lhe pareceu um título muito atrativo, mas naquela altura não tinha inspiração nenhuma para criar coisa melhor. Além disso, o edital pedia o nome verdadeiro do autor. Sem pseudônimos, portanto. Estava na hora da Bia mostrar a cara. E todos saberiam de seus sonhos eróticos, das suas fantasias secretas e de uma certa calcinha vermelha. Jesus! Bia se abanou rubra e envergonhada. Não teria coragem de se expor assim. Mesmo que seu texto não valesse nada, seu nome ficaria registrado.
- Já sei! – disse ela, em voz alta – Vou enviar com o nome do Zé!
Já era uma maneira de participar, disse Bia para si mesma. E sendo assim, o conto Calcinha Vermelha foi enviado em nome de José Mário e com todos os dados referentes a ele. Ninguém jamais saberia que aquele texto era da Bia e se ele fosse muito ruim, a fama de escritor de araque seria do Zé e não dela. Feito isto e com a barriga roncando, Bia se espreguiçou. Olhou para o relógio e já eram quase três horas da tarde. Mas antes de finalmente ir comer alguma coisa, Bia precisava ligar para o Dudu e combinar a mentira sobre o trabalho de ciências. O Zé não podia desconfiar de nada.
Dois meses depois. José Mário estava conferindo um relatório no trabalho quando o celular tocou. O visor acusava um número desconhecido. Antes de atender, olhou para seu colega e comentou:
- Só pode ser cobrança... Quer apostar? Alô?
Uma voz simpática de mulher perguntou:
- É o celular do senhor José Mário Vasconcellos Pereira?
- Sim, é ele mesmo. Mas eu já vou avisando que estou no meio de uma reunião importante e não posso fazer nenhuma contribuição para…
- Boa tarde, senhor José Mário – interrompeu a simpática voz – Meu nome é Marta e faço parte da comissão organizadora da antologia da Editora Mundo Livro.
“E eu com isto?”
- Boa tarde, Marta. Em que posso ajudá-la?
- Estou ligando para lhe informar que o seu texto “Calcinha Vermelha” tirou o primeiro lugar no nosso concurso literário e será publicado pela nossa editora. Parabéns!
- Puxa, muito obrigado! – agradeceu ele, zonzo. Não era possível que fosse engano. A tal Marta até sabia o nome dele completo – Que sorte a minha, hein?
A cabeça de José Mário funcionava a mil. Aquilo era coisa da Bia. Sempre desconfiara de que ela gostava de escrever, porém como a esposa nunca lhe mostrava nenhuma vírgula, respeitava seu silêncio.
- Não foi sorte, senhor José Mário. Foi seu talento.
- Bem, eu… eu ganho alguma coisa com isto?
- Sim! Vou lhe enviar por mail todas as informações referentes à publicação. Mas eu posso lhe adiantar alguma coisa. Seu texto vai fazer parte de uma antologia com os demais catorze classificados e será autografado na Feira do Livro, em data a ser marcada, daqui a três meses. Faremos também um coquetel após a sessão de autógrafos para os autores e seus familiares.
- Mas que legal, Marta! É uma notícia e tanto! Nossa, como estou feliz!
- O seu texto é algo simplesmente arrebatador, senhor José Mário. Foi unânime a escolha do primeiro lugar.
Depois de confirmar o endereço de mail, José Mário desligou o telefone às gargalhadas e contou para o escritório inteiro que faria parte de uma sessão de autógrafos por um conto que nunca tinha escrito e muito menos lido. Os colegas ficaram em polvorosa, ainda mais quando souberam do título. Todos queriam ler. Antes de sair, José Mário prometeu que no dia seguinte traria o conto e leria em voz alta para todos. Certamente, não havia ninguém mais curioso do que ele para saber o teor da Calcinha Vermelha.
Quando José Mário chegou em casa, encontrou a Bia sentada, assistindo atentamente a novela. Ela comentou, quase sem olhar para ele.
- Chegou cedo hoje. Nem aprontei tudo ainda.
Ele se aproximou e deu um beijo nela.
- Vim mais cedo porque eu quero comemorar.
- Comemorar o quê? – Bia o encarou, sem entender – Não vai me dizer que ganhou um aumento?
- Não, não foi aumento. Foi um concurso que eu ganhei.
Bia não percebeu o tom de deboche.
- Concurso? Concurso público? Passou em algum? Você é funcionário público agora?
- Não, amor. Foi um concurso literário. Hoje me ligaram de uma editora que eu esqueci o nome e me informaram que eu tirei o primeiro lugar com o conto Calcinha Vermelha. Achei o máximo, pena não lembrar de ter me inscrito e muito menos o conteúdo do texto.
Em segundos Bia ficou da cor calcinha do seu conto e escondeu a cabeça entre as mãos, totalmente envergonhada. Murmurou, em pânico:
- Meu Deus... não é possível.
- Você pode me explicar direitinho que história é esta, Bia? Uma tal de Marta me ligou hoje me parabenizando pelo meu excelente conto e eu agradeci, emocionado. O que você aprontou, hein?
Ela ficou em pé e pôs-se a andar de um lado para o outro, ainda com o rosto escondido.
- Não acredito… não pode ser… que vergonha. Que raiva!
José Mário também ficou em pé quando a mulher sapateou no meio da sala, furiosa. Ela apontou o dedo indicador para ele e esbravejou:
- Diga que você está me mentindo! Eu não fui classificada e muito menos tirei o primeiro lugar com aquele conto medíocre.
- Bem, mas é verdade, sim. E a escolha foi unânime. Será que eu posso ler a Calcinha Vermelha, por favor? Já que vou participar de uma sessão de autógrafos na Feira do Livro, nada mais justo que eu leia meu conto, não é? Ainda mais que serei entrevistado e tirarei fotos como o mais novo expoente da literatura nacional.
Bia agora estava branca. De raiva, frustração e tristeza. Não era possível que aquilo estivesse acontecendo. Seu sonho tinha saído ao contrário.
- É surreal! Pelo único conto que consegui emplacar na minha vida será você a levar todos os méritos por ele!
- Quer saber? Bem feito! Isto é para você aprender a ser mais corajosa e meter a cara nas coisas!
- José Mário não fale assim comigo!
- Cadê o conto? Imprima a Calcinha Vermelha de uma vez. Estou curioso.
Furiosa e constrangida, Bia foi até o quarto, imprimiu o conto e cinco minutos depois apareceu com uma folha de papel na mão. Rosada, estendeu-a para o marido, dizendo:
- Prometa que não vai rir da minha cara.
- Deixa de besteira, Maria Beatriz – respondeu ele, arrancando o conto da mão dela.
Nos três minutos seguintes, apenas o silêncio reinou naquela sala. Da janela, Bia observava seu marido ler o conto, tentando adivinhar pela sua expressão neutra o que ele estava achando daquela sua incursão na literatura. Finalmente, depois do conto lido, ele a encarou por alguns instantes, parecendo surpreso.
- Caraca, mulher! Fiquei excitado com sua narrativa!
Bia ficou mais vermelha ainda e tentou pegar o texto de volta. José Mário, mais rápido, alertou:
- Nem tente! Seu conto – ou melhor, o meu conto – está simplesmente excitante. Amanhã vou levar para o pessoal do escritório. Eles estavam mais curiosos do que eu.
- Não ouse fazer isto! José Mário, eu peço o divórcio!
- Pode pedir. E você quer impedir por qual motivo? Ele será publicado em três meses.
Desesperada, Bia sentou no sofá e chorou feito uma criança.
- Todos vão saber dos meus desejos secretos! Que vergonha! Eu nunca mais vou escrever uma linha daqui para a frente! Nunca mais!
- O quê? Suas fantasias são todas estas aqui? – perguntou José Mário, empolgado – Maria Beatriz, por que você nunca me contou isto antes?
A noite de amor de Maria Beatriz e José Mário começou ali mesmo, no sofá, antes do jantar e só foi terminar horas depois, de madrugada, na mesa da cozinha. Bendita Calcinha Vermelha.
A Calcinha Vermelha da Bia deu o que falar. Embora o conto fosse atribuído ao José Mário, família e amigos sabiam que a autoria era dela. E o sucesso foi absoluto. Apesar das insistências do marido, Bia jamais mostrou qualquer dos seus escritos para ele. No dia da sessão de autógrafos, ela compareceu e assistiu a glória do seu marido com uma dorzinha no coração. E, embora não revelasse a mais ninguém, participou de outros concursos literários com seu nome verdadeiro.
Mas nunca houve nada igual à Calcinha Vermelha.