Guarnição

Ninguém jamais se perguntara sobre detalhes a fundo das suas Revoluções Culturais, das máscaras de olhos puxados nos palcos e das pinturas que há muito eram consideradas as mais belas do mundo, e que assim como elas, as características e a alma das pessoas daquele lugar eram exatamente grandes, forjadas e emolduradas, pinceladas com qualquer ínfimo cuidado, e rebatizadas de cera que desse um brilho aleatório. Foi desta solidão que nasceu a China, dos impérios erguidos e fortes, mas caídos e frágeis ao mesmo tempo, como uma redoma de ratos que se devoram e se vigiam simultaneamente, como um covil canibal que aos poucos fecha o cerco em torno de si mesmo e morre por querer exasperadamente sair.

“E tu, donde é mesmo que vens?”, “Estava a pensar, quando desci e encontrei lá fora esta carta, endereçada a ti”. Ascenderam a luz, quando a noite já estava obsoleta, do lúmen, qualquer facho seria útil pra enxergar a caligrafia densa no papel. Estava convidado a uma viagem mirabolante, com direito a uma companhia específica. “E quem contigo vai?”, “tu, oras! O projeto que ganhei não fora só de meu mérito, ajudaste-me com tua habilidade de desenho”.

E partiram, foram na névoa de seus pensamentos sem avisar ninguém. Não que não quisessem isso, mas é porque realmente não tinham mais alguém com quem deixar satisfações, um ou outro “estou saindo”, “voltei”. Eram apenas um irmão mais velho e outro mais novo, desde que os pais morreram era assim que se cuidavam, e que não faltasse maturidade ao pequeno, pois tinha grandes talentos e uma cabeça mais focada do que outras.

Chegaram num ponto qualquer, “Por aqui, entrem”. Havia no ônibus, mais cinco pessoas, o motorista não entrava na conta. ”Qual teu nome?”, “Xeng, e o teu?”, “Alicia, prazer”. Foram conversando, numa embocadura da conversa falava “Este é Long, meu irmão mais novo”. Descobriram que ela também fora direcionada por um projeto e que fizera esta pausa junto com os instrutores na China. Viera da Austrália, esperançosa como só, também não tinha companhia, trazia consigo apenas a presença da amizade de sua mala feita, compacta.

“Iremos à Pequim, mantenham a paciência, pois há de demorar”. E demorou. A noite caiu duas vezes sobre a sonolência dos prédios da cidade sem que quase ninguém se comunicasse. Ao lado deles estavam sentados dois homens estranhos que pouco falavam e mal se levantavam, instalavam-se às poucas luzes, como se as trevas os tomassem para que aos fins não mostrassem o rosto escasso. Havia uma mistura incômoda na atmosfera do ambiente, o ar condicionado entupia as narinas e congestionava as paredes do pulmão, somando-se àquele clima nada hospitaleiro. Tudo se figurava como o maior exemplo do retrato capitalista implantado naquelas obras vivas. Não estava mais ali a China que crescera com as suas próprias pernas, mas sim as pernas americanas, malditas, que faziam caminhar todo o mundo. De que adianta xingá-los se é para lá que iremos?

“Queremos descer, queremos comprar comida e usar o banheiro de algum lugar!”, “pois então que fiquem ai, comam o que deixamos lá atrás e que usem o banheiro do ônibus”, “gostaríamos de descer, o banheiro está sujo e a comida quase acabada”, “Pois então na próxima parada descemos”. O motorista não fora nada sutil, mas tempos depois parou em algum lugar “Desçam um de cada vez, este veículo está pressurizado a um número exato de pessoas. Se saírem em demasia tudo poderá se estragar, e ficaremos presos antes de chegarmos ao nosso destino”. Era noite lá fora, e pelos poucos que iam descendo, observavam certa melancolia em tudo ao redor de que passavam. Fizeram o que tinham de fazer, Compraram o que queriam para comer e logo embarcaram.

Muito tempo depois é que Xeng reparou bem no casal que ia aos bancos da frente. Também eram muito estranhos e pareciam não falar com ninguém. Tinham o péssimo hábito de ficar trocando de banco e mexendo nas bolsas, eloqüentes. Em um ponto, Xeng e o rapaz discutiram e quase se bateram, se o quase do “chegamos ao aeroporto” não tivesse se concluído.

Aos poucos desceram do veículo e se dirigiram para uma pista singular, as quais os homens os guiaram. Embarcaram em um avião pouco maior do que aquele ônibus, e logo a voar pelos céus estavam. Esperou-se amanhecer, e logo um daqueles homens estranhos da escuridão saíram a anunciar algo: “Sei que já estamos a viajar juntos há alguns dias, mas desejo boas vindas à todos vocês! Sou o diretor que vos guia nesta viagem científica, na qual vocês, os escolhidos, é que hão de usufruir das novidades da América. Podem me chamar de Doutor Sarajevo”. Era absolutamente estranho o jeito robótico e estúpido de como aquele homem falava e gesticulava, o brilho refletido nos seus óculos espessos deixava-o com ar cínico e maléfico. Quem entende de cartas de tarô diria que não haveria melhor carta que o definisse como o arcano sem número, o louco.

Se a outra viagem fora demorada, esta não tinha absolutamente nada a ver com ela. Rapidamente, logo que a manhã tinha dado seus primeiros sinais de vida sôfregos, já se viam por baixo das nuvens e acima dos oceanos profundos. “Mano, porque o céu e o mar têm olhos de um azul tão igual?”, “Porque talvez o céu e o oceano sejam um só, ou compartilhem os mesmos olhos azuis, como que compartilham dos seus infinitos para cima e para baixo”. E esta reflexão ecoou-se na mente do garoto, repercutida como as ondas de uma pedra que se insere de grados na água.

Logo que chegaram a ver os solos do país, viram-se passar ao lado de uma estátua verdíssima que há muitas décadas havia cantado as odes e os rumores da liberdade trepida e escassa. Para o azar deles, aquela liberdade não mais os pertencia, desde que caíram na cilada das maldades e do egoísmo. Como o caçador que retira as fincas da armadilha na pata do urso, avisaram: “A partir de hoje, não sairão daqui e trabalharão seus projetos para o Doutor Sarajevo, conforme instituirmos. Não ousem se rebelar, pois acreditem, será muito pior”. Dentro do instituto viram protótipos de carros desenvolvidos pelo louco, para que como em um sonho voassem. Xeng então pensava: “Quanto ao Doutor Sarajevo, não é isto mesmo que o seu nome significava? Aquele que faz voar o Hozana nas alturas, a glória divina? Não é a toa que este nome já passou por ser conhecido como o estopim de uma guerra que abalou a estrutura do mundo, a primeira grande guerra! E será que agora estaremos prontos para enfrentar o terceiro desses conflitos mundiais, se novamente um Sarajevo aceitar ser a ultima gota que falta para que o copo transborde?”.

Eis que então se fazem destinos de pessoas. Alguns diriam, “Pelo menos eram órfãos, não deixaram saudades e amargos em peitos de famílias inteiramente constituídas”, mas aos que falam e pensam desta forma fica a reflexão de que não importa o lado da maioria que se olha, ainda existe saudade dentro do peito até mesmo dos mais abandonados. Saudade lógica ou ilusória. Seja uma saudade que se institui no passado, ou num presente tendente ao malquerer, mas que ainda ficam marcas maiores às vitimas, isto não se discute.

Quanto à vida dos chineses, não estava de fato tão ruim, apenas mudara bruscamente de cursos. O garotinho Long cada vez mais sonhava em voltar, sonhava com a liberdade que tanto falavam em existir naquela simples estátua a erguer para o céu uma tocha atrevida. “Será que um dia voltaremos, ou será que neste céu que nos encontramos talvez haja o mesmo azul do oceano em que viemos?”. Xeng refletia junto, com as mãos dadas a Alicia. Um dia poderão voltar a desfrutar da liberdade como um doce que se abre e devora-se sem dúvida nenhuma. Apesar de distante, podia tocar sua casa com pequenos dedos ao encostá-los em um mapa-múndi, e ao tocá-lo podia saborear do azul, o azul que os separava do doce sonho de casa, o doce som das terras da sua velha e escassa China.