Maria molambo
Sou moça-menina de saia rodada estampada florida no pé da canela com enfeites de fitas de santos sagrados do altar da jurema. Molambo de pano solto em fiapos de seda ou chita rasgados a faca com nós por costura. Na altura dos ombros apenas meu busto, peitos de fora, amostra da beleza total do congo bendito. Toda riscada pelas mãos do criador, sem amarrotas ou enxovalhas. Solta na vida, na rua, nas esquinas encruzilhadas. Boca pintada de batom carmim, encarnado da paixão e nas orelhas balangandãs grandes, coloridos, combinados com as guias e pulseiras em estardalhaços musicais.
Na cabeça ornamento de luxo no couro raspado por obrigação. Pura fama de mulata assanhada para os prazeres da carne, oblação. Meu corpo arde vulcão e na boca de grandes lábios o gosto da carne do negro suado chegado em instantes, necessitado de atenção. Não diz o que quer, mas me olha por baixo e eu de cima, desço do salto e me solto e vou ao encontro desse desejo dengoso que me prende em seus braços e me faz solidão. Entre as pernas do negro sua chave que fecha, peito que enche as mãos calejadas no cabo da enxada, cana-de-açúcar chupada, sou bagaço espremido a força do desejo ardente na respiração acelerada. Atada pelo cio, me faço andorinha para ser depenada. Volúpia gritante do macho em pulsação, sou toda dengosa nos braços daquele que me quer saciar...
Rodo a baiana em ponta de pé bailando ao vento como folha seca caída da árvore frondosa do quintal da casa grande na instância. Aos olhos da sinhá, sou cobra criada em botija, o despacho encontrado no pé da lagoa onde a água não corre, risco feito no chão, sou a canção do desejo do coronel na cama com suas senhoras. A falta de respeito, sou o efeito da cana, embriagues. Malandra criada do lado de dentro do balcão da venda, vendo o tempo passar e ficar marcado na palma da mão. Vendo a lembrança a preço de banana e faço escorregar na casca todos aqueles que se atreverem cruzar meu caminho sem tirar o chapéu, ofertar moedas ou molhar meus beiços de beijos doces.
Sarava para mim e para todas as moças faceiras da coroa da Oxum, dou risadas escancaradas em cor de ouro de um lado a outro a mostrar os dentes brancos cuidados e o resto do corpo em movimentos gingados salientes, intrépidos, impávidos de lado, de banda, do bando de cima. Sou sina, garapa da cana, morena, mulata do congo... Princesa das camas mornas, fogo de brasa, carvão. Atirada entre as pernas dos senhores de cor de talco, palco efetivo de grandes espetáculos. Sou rastro, fome, sede e dor. Fruto proibido, sou libido, instinto, desejo sexual. Consagrada pelos pés e pelas mãos, rodo, chamo, corro e paro.
Nasci da fusão do amor existente entre a volúpia da carne e a embriagues do espírito, por aí, em dia de noite de lua cheia, nas calçadas das madames e no leito do choro me fiz batizada as margens da vida, nas linhas traçadas. Ganhei enxoval encharcado, roto, de panos usados e esquecidos dentro dos baús carcomidos de bolor pelo tempo decorrido. Herdei apelido e agora tenho nome de peso, Molambo, aquela que diz, promete e cumpre.
Venho de cima das nuvens em rodopios, arrepio na chegada e nas quebradas eu gingo porque cabaré que eu não mando, eu mando fechar. As portas se abrem, as janelas se escancaram, os copos balançam e deixo rolar em minha presença o cheiro da quenga dentro do seu ganzá.
Saúdo seu Zé Pretinho, rainha Ginga e as minhas aias pequenas. Sou quenga de coco lascada ao meio, secada ao sol do meio-dia, hora da ave de rapina, sou sina, cismada, mato queimado pelo sol, a brasa aflita saltitante, sou a errante flecha que acerta o alvo e sobre o meu cavalo eu monto e açoito, sou coice pela estrada que cruza ligeiro a macumba estendida, quarada nas badaladas dos ponteiros amancebados. Tira de pano em nó cego molhado, quarado de dia e de noite, sou açoite no tronco e dou trono, dou o troco a quem por mim se atrever a passar.
Piso bem forte no chão que me segura e bato palma na roda de gira que me quer em trabalho. Sou astro reluzente, lua minguante hemorrágica, aquela a quem se pede e faz figa, fecha os olhos e mentaliza. Despacho de bebida doce, sou a voz algoz da açucena, menina pequena mimada, Maria Molambo da encruzilhada das almas desencontradas, a pluma do rabo do pavão em disparada, a que ata os pés e as mãos em cruz e pela via da veia latente canta:
_ Sou a dama de ouro/do vale da sombra/ saia rodada de renda/ a fenda que se encrava/ o cravo bordado em molambo/ sou o tecido de teia/ dos fios de ouro da cigana/ me veste de chita/ em farrapos de tiras/ espalha em mim o cheiro/ das flores dos campos colhidos/ dê cá uma bebida, moça/ faça as honras e toque/ meu canto é ouvido em todo lugar, porque cabaré que eu não mando, dou ordem e mando fechar...
Sarava todas as moças, exus e juremas catimbozeando neste lugar. Pais, mães e cavalos assentados, dois passos para trás, três passos para a direita, três passos para a esquerda e sete passos para frente para poder caminhar do lado da sombra da luz.
Veio me ver esse menino? Chegue mais perto, ande, saúde a moça em aperto de mão. Hum que mão graúda, possante, prestigiosa. Utensílio de cabra macho afeiçoado ao trabalho de arrancar touco e capinar mato. Mate a sede da gazela em prensa de mão pela mão em ajuda e jure a mim devoção. Aperte a mão da dama da noite e afeiçoe também a ela em apertos densos, estonteantes. Vá até o chão e toque as canelas que sambam e beije os pés desta que baila solta, leve e livre no ar deste terreiro. Saúde a moça, ligeiro, acenda um troço, preciso baforar... Baforar para que se abram os caminhos trancados do lado de cá... Erga os braços em músculos rígidos, seu moço, isso, erga os braços para o alto com a finalidade de descruzar o que está tão obscuro, turvo, sem claridade e sombrio do lado desta vida que te faz ficar do outro lado da ponte sem querer atravessar e na tesoura do destino eis moço temido pelas bandas de cá. Guerreiro valente de sangue rubro a correr nessas veias das velhas correntes de destemidos orixás.
Na fumaça do meu cachimbo eu vejo que estás com o coração partido por causa da moça cravo e canela da rua de trás que não te quer mais para chafurdar. Vejo a dor e o desespero deste cabra da peste suado, homem de coração manso e arretado, pulador de cerca e conhecido amasiado de camas alheias e corpos desalentados. Vejo uma sombra em volta e no sinal da cruz eu renego toda a esquerda que se liberta e impede dos mansos trabalharem.
Vou pegá-la pelos cabelos e trazê-la de volta para os braços do amigo diante do meu altar. A dama de copa de coração embrutecido, coberto por tecido que quero em molambo para a minha saia aumentar. Vou trazê-la em poucas luas, cantando loas de se acasalar e na oferenda da prenda um corte de animal gordo há de concretizar.
Um banho de rosas amarelas de sol, isso, colha os girassóis das manhãs e despeje em água fervida para o moço se banhar. Se assente em pensamentos positivos, cante para a moça que a moça vem e há de te ajudar. Em troca traga água que arde quando entra na boca, fumo de rolo para poder baforar... Alforria essas mãos, bebe no meu caneco esse treco, bebe, danado, bebe sem pestanejar.
Mentalize, isso, pense na moça virada de costa e se apegue na saia da molambo e nesta gira vou te amarrotar. Ta amarrado a mim desde agora, jogue fora esse choro e venha para roda gingar. Dança na gira da Maria Molambo em palmas e vibras... viche, a moça descalça da encruzilhada, deserta, até as pedras se cruzam, né não? Na outra lua me lembrarei desses olhos cor de mel...
Ai, sangue. Que é isso seu moço? Faz isso não. Atingiu meu cavalo de cima abaixo, do lado do peito em golpe certeiro. Estraçalhou-lhe o peito comovido, virou cachoeira escarlate... Que foi isso seu moço? Meu peito fechado inchou, foi plugado pelo golpe da navalha como flecha de cupido e agora? Minhas mãos estão dormentes e trêmulas e do lado da orelha esquerda sinto escorrer um suor todo frio.
Meu corpo em arrepio escuta a voz que diz: É hora, é hora, é hora... As mãos que se levam ao peito, quente, pulsante, profundo e as pernas que já não se governam... Solto a última baforada do fumo de cravo enquanto subo para o lado de cima e em cima da obrigação cai meu cavalo em molambos, o peito retalhado em pranto de sorriso concupiscente, os braços em cruz desdobrados, ali, fechando os olhos para visualizar o que havia por trás das cores do arco-íris, porta de entrada da morada das moças, pretas velhas e encruzilhadas.