Dizer ao não querer dizer
“Eu só quis dizer...”, o pensamento vem mais uma vez na minha cabeça e tudo gira. A pessoa na minha frente quis confrontar minha afirmação. Uma afirmação bem simples, daquelas feitas por fazer, mas que nem por serem esse singelo pedaço de pensamento, deixam de ser o seu pensamento; deixam de ser eu. Aí, veio essa pivete e me refez o que eu disse bem na minha frente. Ela deslocou todo o sentido das minhas palavras e, sem educação alguma, resolveu imprimir suas verdades em mim. Eu havia dito simplesmente: “O dia tá rosa hoje!” e ela, sentada de costas pra mim, se virou com o sorriso mais forçado do planeta e comentou: “Ia ficar um desenho foda, hein...” No exato momento em que a ouvi, fiquei bem chateada, mas de uma maneira que não me afeta completamente, aparente apenas. Esperei que assim ela sentisse minha raiva pelos meus olhos e me poupasse as palavras a mais. Porém seu sorriso era estático e sua alegria acerca de sua genialidade comentada continuava a me puxar pra si, pra seu próprio núcleo.
“Eu só disse que o dia tava bonito rosa...”, nesse instante minha tática foi outra e retribuí um sorriso. Foi a vez dela fechar o rosto por estranhamento. Felizmente ela dirigiu os olhos através da janela e pôde constatar o que havia dito. Acho que percebeu que o dia só estava rosa e que isso bastava. Ledo engano. Ela voltou a sorrir e puxou o caderno da mochila, prontificando-se a desenhar.
À princípio não acreditei no que acontecia diante de mim. Que mulherzinha estúpida! Eu tenho um ódio tremendo de gente que vive de imagens, fotos, roupas, vestimentas, personagens... Eu sei lá como descrever, mas é isso de visualizar seus gestos fora do corpo, apostando numa mensagem falsa ao espectador. O jeito como ela alisava o lápis na folha e lambia os lábios, tudo artificialmente orquestrado pra me causar algum tipo de reação. Ela realmente acha que eu vou colocá-la num pedestal por simplesmente fazer de tudo um projeto artístico? Só porque fazemos a porra do curso de desenho industrial não quer dizer que tudo em nossas vidas tenha que estar relacionado à droga da faculdade. Me recuso a enxergar meu mundo pelos mesmos olhos durante esses quatro anos aqui dentro; na próxima o que vai ser: ter os olhos “época” de quem vê ou “superinteressante” de quem admira? Deve-se realmente viver do que se faz ou fazer do que se vive? Puta merda, ela conseguiu. Me tirou do sério e embaralhou meus pensamentos.
“Eu só quis dizer...”
“Shhhh... Tô quase terminando.”
Ela não fez isso! Eu me levantei, peguei a porcaria do cigarro no meu bolso e fui até a janela me acalmar. Acendi e joguei pra fora. Ufa, essa pivete pensa que faz um bem danado pro mundo quando se sente bem, mas quem sou eu pra recriminá-la, eu nunca de fato me senti bem. Talvez por isso nunca fiz nada de bom pro mundo. O fato é que não há esse bem lá fora só porque existe um sentimento bom aqui dentro. Sei que não. Pensando assim, me vi retida em uma lembrança vaga e chata. Não era bem uma lembrança boa, porque nunca me senti assim tão bem na minha vida: era tipo um dia assim como esse, em que uma cor prevalece no céu. Um azul bem forte, talvez fosse só o quesito passado afetando minha memória, mas era anormal aquele azul que me envolvia por inteira. Não sei, acho que queria chorar aquele dia (ou é agora? Deve ser a influência do tempo essa lágrima que caí). Tive uma bomba em uma disciplina, uma dessas professoras mal-amadas bem vadias que só querem te ferrar porque o que sabem de bom da vida está restrito àquela sala e àquelas palavras cheias de loucura sexual. Enfim, essa figura me ferrou e fui pro banheiro feminino chorar, algo não muito comum, mas naquele dia era como se aquele fato fosse a válvula chefe para o meu colapso total. Eu tinha umas questões mal-resolvidas em casa por que fiz uma merda daquelas bem grandes nesse meio tempo de ano. Até fiquei uma semana na minha avó; mas naquele exato dia eu tinha saído de casa com palavras bem bravas ressoando na minha mente (“Quero mais é que você e toda esse seu teatrinho de moralista vão se foder!”) e não eram palavras que devessem ser ditas a sua mãe, muito menos quando é ela a única capaz de te livrar da dor. Tá, eu fodi legal quando fui me meter com a piranhazinha da Verônica e com aqueles seus amiguinhos patéticos. Sabia que ia dar merda, mas mesmo assim fui entrando fundo no joguinho do eu-quero-testar-meus-limites, e eles me levaram à fossa diversas vezes. Tinha dias em que eu dormia junto de gente que sabia que não prestava e que, possivelmente, tinha mortes acumuladas no currículo, mas isso me motivava a continuar de uma maneira absurda e paradoxal. Perdi inúmeras virgindades sem me dar conta. Perdi as primeiras fases do desperdício e quando acordei ouvi em alto e bom som minha mãe me chamar de nada, meu pai me olhar como uma prostituta barata e meu irmão me tratar com nojo. Teve esse dia - meramente forjado de “dia” - em que me olhei e vi isso tudo e senti raiva mesmo. Parei; quer dizer é difícil parar...
Com o bagulho em si foi até fácil, porque nisso nunca fui fundo. A droga era parar com a vontade de ser o tal nada. Aquele dia azul tinha me feito refém do banheiro feminino, daquele espelho e daquele choramingo alto que não tinha provas de existir de fato. Não sei bem quanto tempo fiquei trancada ali, mas fui lembrando da droga toda com uma nitidez boa, fácil... Sabia porque tinha brigado com minha mãe depois de ter me transformado num robô por dois meses. Sabia que era impossível reter toda a raiva dentro de mim por mais tempo e que era lógica a vontade de destruir quem ainda restava de herói. Aquelas horas azuis foram me amortecendo. Olhava pro nada e era como se visse fora dos muros, como se estivesse aberta nesse dia de longas horas; eu estava era no tempo mesmo. É estranho porque só agora percebo isso. Não tem nada a ver com a cor, ela só te ajuda a lembrar. Dali pros dias imediatos eu fui melhorando em algum sentido, não digo no sentido exatamente pleno de cura e coisa e tal, mas fui me estruturando pra crescer em mim.
O cigarro acabou. A garota não tá mais ali, graças aos céus. Não sei porque a odiei tanto, só sei que o ódio me é aleatório. Faz parte desse meu processo. “Cara, quero ser autêntica!” falei na aula seguinte. A pivete estava lá e me olhou estranho. “Eu sei, é...” (ele continua sem saber o meu nome, nem me importo em dizer) “Eu sei, só queria que você explicasse porque tem tanta aversão a essa estética!”, o professor desviou os olhos de mim e pensei que seria bom se ele jogasse aquele papo todo pela janela e se fixasse nos meus peitos. Porque nem todo homem é maníaco sexual? “E isso vai de lição pra todos vocês, não vale sair por aí teorizando e criticando indiscriminadamente. É preciso parar, olhar...” Ele se virou e colocou as mãos nos bolsos - uma bunda espetacular, deve-se dizer. Apontou pela janela: o dia estava quase no fim. “Por exemplo, já notaram o tom do dia hoje?”
Eu ri. “O dia tá bonito rosa, não?” Ela me olhou sonsa, revelando sua verdadeira face não trabalhada no personagem perfeição-profissional. “Com certeza, está... está sim, muito bonito rosa” ele riu na minha direção. O desenho de minha cara colega pivete estava uma bela droga, eu finalmente pude ver. Sorri feliz e me dirigi ao meu querido professor. De repente minhas palavras tinham adjetivos carinhosos e eram boas de pensar. O professor sorriu pra mim mais uma vez com o dia em seus olhos. Fiquei feliz. Seus olhos caíram bem nos meus peitos. Fiquei feliz.