ENTRE FACAS E BEIJOS
Segunda-feira. Nesse dia os usuários do único ônibus municipal esperaram em vão por ele.
O “quê” a danada daquela mulher viu em mim? Confesso buscar até hoje a razão para tal fato sem, contudo, encontrá-la. Certeza absoluta tenho comigo que a mais néscia das criaturas reconheceria que da vida de um motorista municipal não se pode especular sequer mero futuro, quanto mais um promissor. Não seria só por isso. A minha magreza de faquir, pobre, despido de qualquer resquício de beleza, todos esses “atrativos” é que não deviam mesmo serem dignos de merecer a sua atenção.
A pura verdade é que eu já não me cabia mais de sem graça. De início cheguei a pensar não ser comigo a direção do seu atrevimento. Olhava em volta --- procurava outro possível alvo de suas provocativas insinuações --- e não via viv’alma por perto. O cerco, porém, veio fechando; por fim, não restavam dúvidas: a canja estava servida expressamente para mim!
Destarte, no início, transpirei medo e inibição; por fim, acabei por louvar a sabedoria popular: “sempre haverá um chinelo para um pé doente e cansado.” E assim dei vivas à aventura!
João Panquinha é tido e havido como pica grossa por aqui. Vice-prefeito da cidade, é um dos graúdos; homem de baixa estatura moral comenta, à boca pequena, que dona Bebel é “arteira de homens”. Já o marido dela alinha-se ao nível de Panquinha; habituou-se a conviver com suas artes licenciosas, desde que a inédita concessão não se alargasse além do círculo dos tais graúdos. “Pobre não!... pobre tem a língua solta!”. Teria dito, posto sabermos ser outros seus sórdidos e inconfessáveis interesses.
Agora, não é porque sou pobre que fui eu que falei. Juro que não. Afinal, era eu o ator protagonista da peça, e embora tenhamos até então representado poucas vezes, não tínhamos ainda chegado aos “finalmente”. O progresso que conseguimos, materializava-se em beijos, amassos e num pequeno mimo: Bebel passou a chamar-me carinhosamente por D. Juan Descarnado. Apenas isso. Ora!, sendo do meu inteiro conhecimento da truculência do marido, qual a razão a dar com a língua nos dentes?
Juro, mais uma vez, não ser eu a comentar essa prazerosa arte de Bebel, mas que o Jackson ficou sabendo, isso ele ficou. Eis a razão de eu estar agora suspenso e sacudido no ar.
Com as pernas arqueadas feito orangotangos, coxas que rivalizam folgadas com a minha cintura, não mobilizou o menor esforço para levantar meus 52 quilos na altura de sua cara, donde, contraindo os músculos numa careta simiesca, ameaçou seriamente a minha franzina compleição.
O homem era ignorante.
Àquele momento não vi escolha: ou apanhava por ter comido ou esbofeteado por não ter. Era questão direta de ofensa para com ele se realmente tivesse comido, ou indireta, menosprezando sua senhora se não confessasse o caso.
“ Não?!!!... então tu acha que a minha senhora não é digna de ti, é?!!!” Imaginava-o aos gritos grudado em meu pescoço.
A questão era melindrosa.
Mas eis a realidade ameaçadora à minha frente. A massa disforme grunhiu:
--- “Chegou” uns negócios aos meus ouvidos que não me agradaram, visse? Sacudiu-me qual um trapo velho.
--- Que se trata, homem? Gaguejei.
--- Comentários de você com a minha mulé!
--- Eu?!!! Quem me dera! Aliás... quem me dera não!... Quem sou eu, seo Jackson?!!!
--- Se a galinha da minha mulé tiver rebaixado a seu ponto, Zé, vou meter a “pexêra” no seu bucho e no dela também, ouvisse?... E que fique claro, sua vara de pescar traíra*: se ouvir outra fofoca, ó! Fez um gesto nervoso de chuchar a faca em mim.
--- Mas seo Jackson, não seguro a língua do povo!
--- Se vira!...Problema seu!
--- Mas seo Jackson?!!! --- O infeliz motorista tenta atrair a benevolência do seu agressor --- Já cometi muitos erros nessa minha vida, mas esse tá acima de minhas forças, meu caro!... Nem conheço dona Bebel direito, homem!
--- É bom mesmo! Indeciso o brutamontes parece ter esquecido o seu papel; mas vociferou ainda --- ...Vai se safar dessa, cabra nojento, porque não vou enferrujar minha faca com esse seu sangue de viado!
Afrouxou seus músculos; meus pés voltaram ao chão.
Humilhado sim, cagado por enquanto, não!
Vivia eu lá, naquela sinuca, entre a faca e os beijos. Jackson tem a fama de ser violento, ademais tem a “pexêra”; e morro de medo de “pexêra”, tão sabendo?
Não obstante as ameaças do marido safado, todo homem, em tal situação, sente-se influído a possuir o fruto proibido, à tentação do sagrado. O fruto surrupiado traz o sabor especial da excitação, diferente, pois, do trivial comprado, quando não do habitual doméstico.
Picado pelo desejo, mal pensava nos beijos a faca aparecia ameaçadora no meio --- a lâmina longa, afiada, entrando e revirando as entranhas permitindo o sangue esguichar aos borbotões! Era horripilante! Causava-me pavor!
Domingo à noite. A solidão do quartinho reanimou as minhas forças. Desejei-a, então, louca e ardentemente por todos os meios e por todos os lados. De súbito, um novo homem, uma nova coragem, um novo ímpeto. Com esse estado de espírito consumi toda a noite imaginando soluções compatíveis à minha natureza branda; urdia, por outro lado, alternativas até de ordem violenta, contrárias a ela, considerando inclusive a eliminação do gigolô amedrontador.
Sucumbi enfim a uma delas. E foi o que se deu.
Fugi!
* traíra, peixe predador, pesca-o com qualquer vara rústica aparelhada.
O “quê” a danada daquela mulher viu em mim? Confesso buscar até hoje a razão para tal fato sem, contudo, encontrá-la. Certeza absoluta tenho comigo que a mais néscia das criaturas reconheceria que da vida de um motorista municipal não se pode especular sequer mero futuro, quanto mais um promissor. Não seria só por isso. A minha magreza de faquir, pobre, despido de qualquer resquício de beleza, todos esses “atrativos” é que não deviam mesmo serem dignos de merecer a sua atenção.
A pura verdade é que eu já não me cabia mais de sem graça. De início cheguei a pensar não ser comigo a direção do seu atrevimento. Olhava em volta --- procurava outro possível alvo de suas provocativas insinuações --- e não via viv’alma por perto. O cerco, porém, veio fechando; por fim, não restavam dúvidas: a canja estava servida expressamente para mim!
Destarte, no início, transpirei medo e inibição; por fim, acabei por louvar a sabedoria popular: “sempre haverá um chinelo para um pé doente e cansado.” E assim dei vivas à aventura!
João Panquinha é tido e havido como pica grossa por aqui. Vice-prefeito da cidade, é um dos graúdos; homem de baixa estatura moral comenta, à boca pequena, que dona Bebel é “arteira de homens”. Já o marido dela alinha-se ao nível de Panquinha; habituou-se a conviver com suas artes licenciosas, desde que a inédita concessão não se alargasse além do círculo dos tais graúdos. “Pobre não!... pobre tem a língua solta!”. Teria dito, posto sabermos ser outros seus sórdidos e inconfessáveis interesses.
Agora, não é porque sou pobre que fui eu que falei. Juro que não. Afinal, era eu o ator protagonista da peça, e embora tenhamos até então representado poucas vezes, não tínhamos ainda chegado aos “finalmente”. O progresso que conseguimos, materializava-se em beijos, amassos e num pequeno mimo: Bebel passou a chamar-me carinhosamente por D. Juan Descarnado. Apenas isso. Ora!, sendo do meu inteiro conhecimento da truculência do marido, qual a razão a dar com a língua nos dentes?
Juro, mais uma vez, não ser eu a comentar essa prazerosa arte de Bebel, mas que o Jackson ficou sabendo, isso ele ficou. Eis a razão de eu estar agora suspenso e sacudido no ar.
Com as pernas arqueadas feito orangotangos, coxas que rivalizam folgadas com a minha cintura, não mobilizou o menor esforço para levantar meus 52 quilos na altura de sua cara, donde, contraindo os músculos numa careta simiesca, ameaçou seriamente a minha franzina compleição.
O homem era ignorante.
Àquele momento não vi escolha: ou apanhava por ter comido ou esbofeteado por não ter. Era questão direta de ofensa para com ele se realmente tivesse comido, ou indireta, menosprezando sua senhora se não confessasse o caso.
“ Não?!!!... então tu acha que a minha senhora não é digna de ti, é?!!!” Imaginava-o aos gritos grudado em meu pescoço.
A questão era melindrosa.
Mas eis a realidade ameaçadora à minha frente. A massa disforme grunhiu:
--- “Chegou” uns negócios aos meus ouvidos que não me agradaram, visse? Sacudiu-me qual um trapo velho.
--- Que se trata, homem? Gaguejei.
--- Comentários de você com a minha mulé!
--- Eu?!!! Quem me dera! Aliás... quem me dera não!... Quem sou eu, seo Jackson?!!!
--- Se a galinha da minha mulé tiver rebaixado a seu ponto, Zé, vou meter a “pexêra” no seu bucho e no dela também, ouvisse?... E que fique claro, sua vara de pescar traíra*: se ouvir outra fofoca, ó! Fez um gesto nervoso de chuchar a faca em mim.
--- Mas seo Jackson, não seguro a língua do povo!
--- Se vira!...Problema seu!
--- Mas seo Jackson?!!! --- O infeliz motorista tenta atrair a benevolência do seu agressor --- Já cometi muitos erros nessa minha vida, mas esse tá acima de minhas forças, meu caro!... Nem conheço dona Bebel direito, homem!
--- É bom mesmo! Indeciso o brutamontes parece ter esquecido o seu papel; mas vociferou ainda --- ...Vai se safar dessa, cabra nojento, porque não vou enferrujar minha faca com esse seu sangue de viado!
Afrouxou seus músculos; meus pés voltaram ao chão.
Humilhado sim, cagado por enquanto, não!
Vivia eu lá, naquela sinuca, entre a faca e os beijos. Jackson tem a fama de ser violento, ademais tem a “pexêra”; e morro de medo de “pexêra”, tão sabendo?
Não obstante as ameaças do marido safado, todo homem, em tal situação, sente-se influído a possuir o fruto proibido, à tentação do sagrado. O fruto surrupiado traz o sabor especial da excitação, diferente, pois, do trivial comprado, quando não do habitual doméstico.
Picado pelo desejo, mal pensava nos beijos a faca aparecia ameaçadora no meio --- a lâmina longa, afiada, entrando e revirando as entranhas permitindo o sangue esguichar aos borbotões! Era horripilante! Causava-me pavor!
Domingo à noite. A solidão do quartinho reanimou as minhas forças. Desejei-a, então, louca e ardentemente por todos os meios e por todos os lados. De súbito, um novo homem, uma nova coragem, um novo ímpeto. Com esse estado de espírito consumi toda a noite imaginando soluções compatíveis à minha natureza branda; urdia, por outro lado, alternativas até de ordem violenta, contrárias a ela, considerando inclusive a eliminação do gigolô amedrontador.
Sucumbi enfim a uma delas. E foi o que se deu.
Fugi!
* traíra, peixe predador, pesca-o com qualquer vara rústica aparelhada.