DOLCE VITA

DOLCE VITA


Da vidraça da janela, que ficava no 8º andar do Hospital, onde estava internado, convalescente, depois da cirurgia de próstata, ele divisava boa parte da cidade, que, aos poucos, perdia a beleza do casario antigo, roubada da visão da baía, agora empanada pelos monstrengos de cimento-armado, como qualificava os arranha-céus, que se apinhavam, na corrida desvairada e ambiciosa das firmas construtoras, transformando a paisagem antes bucólica da parte central. Os antigos prédios (alguns tombados) ali ainda restavam entre figueiras centenárias, como conheceu quando ali aportou. Era o que o consolava, diante da "selva de pedra". Contestava. Mesmo assim, gostava da cidade, que, embora nordestino, a adotou como sua também, pois ali se fez como profissional; naquele lugar criou um nome, até mesmo no mundo das letras. As suas publicações, jornalísticas em princípio, escrevendo crônicas semanais para alguns jornais da cidade, e, depois, editando os seus primeiros livros de contos. Tudo isso o levou a ser eleito, tão logo, membro da Academia de Letras do Estado sulino que o acolheu.
Em determinadas ocasiões, detestava tudo. O mundo parecia desabar por sobre ele. Enchia-se de revolta até mesmo com a cidade, onde, pelos seus méritos, fizeram-no cidadão-honorário. O frio rigoroso de junho e julho, que caía por toda a região, mostrando-lhe cinco graus no filete vermelho de mercúrio, no termômetro sobre a sua mesa de trabalho, contribuía para o seu mau-humor, refletindo no seu relacionamento familiar.
Naquele quarto, de paredes de um branco meio encardido, vigiado por um Cristo de cobre crucificado à frente do seu leito, recordava, vendo o céu acinzentado pela vidraça da janela, como era gostoso o "escocês", com uma pedra de gelo, que ia bebericando pausadamente no seu escritório, torcendo pela vinda dos dias quentes do verão, que lhe proporcionavam uma disposição incontida, que até julgava fora do normal, naquela altura da vida em que se encontrava.
-- Como é que está a plantação de cebola, Zeraldo? Zeraldo era o caseiro que zelava pelo sítio (um pequeno pedaço de chão), a poucos quilômetros do centro, que adquirira, frustrado inconscientemente, por não ter sido filho de fazendeiro, como muitos dos seus conterrâneos do seu Estado nordestino.
-- E a vaquinha "Dengosa" tem dado algum leite? Indagava do seu modesto servidor que, desajeitado, não tinha argumento. Quando tentava se explicar, usava do linguajar estranho, herdado dos pais, mais parecido um dialeto. Nascera e se criara ali mesmo, nas brenhas das matas que restam ainda na faixa litorânea do Sul. Sem escolaridade, neto de primários emigrantes da Ilha da Madeira, fazia uma verdadeira salada de vocábulos, com expressões peculiares às dos descendentes. Mesmo assim, justificava-se só Deus sabe como. Certo é que a sua honestidade e o cumprimento das suas obrigações prevaleciam sobre aqueles seus defeitos.
Aquilo para Neimar era uma excelente terapia, o que comentava com colegas, nos intervalos dos seus plantões, enquanto os alto-falantes do Hospital esqueciam o seu nome: "Atenção, dr. Neimar! A sala de cirurgia está sendo providenciada. Solicitam a sua presença àquele local!" As idiotices e o bom-humor de Zeraldo transformavam-se em doces estimulantes, que lhe causavam risos (discretos) "desopilantes" do fígado, tão amargamente sofrido pelo ambiente familiar. Confessava aos colegas mais íntimos. Em casa, considerava-se um exilado, ou um desterrado, dentro do seu território. Sentia-se só, confinado na sala que lhe servia de escritório, sem, sequer, a atenção dos filhos. A esposa, neurótica, há muito permanecia à margem da vida de Neimar, indiferente a tudo que partisse dele, ou que lhe sucedesse, não só no campo profissional, como noutras vitórias no jornalismo e no meio literário. As honrarias que lhe prestavam eram aplaudidas por amigos e colegas. A família, raramente, o acompanhava aos eventos em sua honra.
E os seus olhos se fechavam, naquela reflexão, diante do cinzento céu da baía. A monotonia do aposento hospitalar enchia-lhe de tristes, mas também alegres recordações. Lembrava-se das datas festivas de fim de ano, principalmente do Natal. Guardava bem vivas na memória as datas dos aniversários dos filhos, da esposa e dos irmãos. Esses viviam distantes. Mas não os esquecia naquelas efemérides. Para ele, eram dias quase históricos. Jamais deixou de lhes telefonar em suas datas natalícias.
"Feliz Natal! Feliz Natal!" Como invejava a alegria, a algazarra na casa do vizinho no dia 25 de Dezembro. Todos os anos, era a mesma coisa nos festejos natalinos: os cumprimentos, as trocas de presentes, os abraços afetuosos, os apertos-de-mãos. Que maravilha! O estampido da rolha do champanhe, que abriram, era como um tiro de misericórdia em sua cabeça, destruindo tudo aquilo que nunca tivera em seu lar, ao lado dos seus familiares. O Natal sempre lhe fora uma ocasião por demais melancólica; deprimente; fria, mais gelada do que a temperatura que caía por sobre a cidade, por sobre toda a região do sudoeste, enfim. Não havia troca de presentes, nem brincadeira de amigo-oculto, nem ceia, nem árvore de Natal, que tanto simboliza essa época; não havia nada, nada. O indiferentismo da família doía-lhe profundamente. E a solidão ele curtia com doses de uísque, ou vodca, com gelo, o que, aos poucos o anestesiavam, transportando-o para um mundo irreal, de fantasias, assim como num sonho. E, meio acordado, meio sonolento, sentia a presença do velho Noël ali no seu escritório enchendo de um mundo de presentes um saco vermelho, sem se importar com a sua pessoa. Dali partia o bom velhinho para a rua, ao encontro da meninada da vizinhança que o recebia em aplausos. Neimar, com uma lágrima descendo pela face entristecida, encolhia-se no canto de sua janela, sentindo-se a mais humilhada das criaturas por não merecer também uma daquelas tantas lembranças que papai Noël carregava às costas.
-- "Por quê, se perguntava, aquela frieza do risonho e corado velhinho para com ele, que tantas crianças trouxera ao mundo no Hospital, onde trabalhou a vida quase inteira, como obstetra? Papai Noël teria que entender que ele merecia qualquer atenção." Naquele momento, Neimar sentia-se como uma daquelas crianças. Ele merecia, pelo menos, um abraço do gordo Noël. Mas, não. O uísque já o tirava daquele entorpecimento, mas permanecia na sua sala-escritório, saturado de tudo e de todos, inclusive de ler tanta conversa fiada de políticos nas páginas do Jornal do Brasil, que já não trazia mais a Coluna do Castelo, seu jornalista preferido.
-- "De que adianta viver, se a luta tinha sido em vão", continuava a se interrogar. Constituiu um razoável patrimônio. Tudo fez para ver os filhos, não igual a ele: um parteiro dedicado, que retirava das entranhas de tantas mães os adorados filhos que esperavam ansiosas. Tornou-se quase um ídolo, quase um herói, prestigiado, não só pelas senhoras da sociedade, como por modestas mulheres da periferia da cidade. Tinha orgulho daquilo. Os tantos partos que fez considerava como troféus, que, infelizmente, não havia meios de estampá-los nas paredes do seu escritório. Os filhos nunca desejaram seguir as suas pegadas. "Muito bem!" Conformava-se. No entanto, queria que entendessem a sua preocupação de deixá-los independentes financeiramente, livres das mesadas insignificantes que lhes proporcionou até antes do seu falecimento. Ainda levou consigo a frustração de não ter tido neto ou netos.
Em seu devaneio, a noite de Natal passava cheia de recordações. Nunca esqueceu, e mais ainda em dezembro, a festinha, embora modesta, que a sua mãe, há muito falecida, organizava todos os anos, reunindo, com o marido, todos os filhos, noras e netos para a tão esperada ceia do Natal. Era, na verdade, uma festa simples, mas regada de muita alegria, de um calor humano indiscutível, de uma ternura que somava todos os dias do ano vivido com os familiares, naquele momento. Havia também, não podiam faltar, presentes para todos. E isso ela fazia questão. Mas, ele estava sonhando. Deu-se por si sentado em sua cadeira, de braços cruzados sobre o peito, com a cabeça inclinada, voltando daquele tempo distante vivido na sua adolescência na casa dos seus pais. O relógio, no seu tic-tac, à sua frente, já passava da meia-noite e o silêncio dizia que os seus filhos, ou dormiam, ou “curtiam” o Natal, o que era mais provável, na companhia de namorados em qualquer outro lugar da cidade. Dolce vita! Falou pra si.
Pablo Calvo
Enviado por Pablo Calvo em 25/10/2010
Código do texto: T2577137
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