Reflexões sobre o ego e o envelhecimento

Observei aquelas mãos que ainda tinham vitalidade, as unhas bem aparadas.... Por outro lado, sutilmente, senti o vacilar de seus movimentos na hora em que escrevia as informações naquele prontuário médico. Era possível perceber que fazia um esforço sobre-humano para não demonstrar a fragilidade de sua visão, pois estava sem óculos. Seus movimentos eram lentos e por causa disso a consulta estava se prolongando muito, e eu e minha sobrinha esperávamos pacientemente o término das anotações. Ali, sentadas diante dele.

- Pensei: como será na hora de realizar o parto se não possui mais a agilidade de um jovem? Principalmente porque mantém a teimosia de não usar óculos.

Meu Deus! Que atrapalho foi na hora de verificar a pressão arterial de Rafaela. Seus gestos eram trêmulos e provavelmente seus ouvidos não escutavam muito bem. Bem, diga-se de passagem, que estas observações eram num campo muito sutil.

Aparência daquele médico era normal. Vestido de branco e cabelos grisalhos, este ginecologista obstetra tinha sido escolhido por minha sobrinha para iniciar o seu pré-natal, especialmente porque está grávida pela primeira vez. A escolha foi feita quase como num jogo de eliminação, pela lista de profissionais que o plano de saúde oferecia e considerando que ela não conhecia ninguém na cidade.

- “Tia, preciso encontrar um médico ginecologista e obstetra em São Paulo e já marquei uma consulta com um que atende perto de casa. Quer ir comigo e me ajudar a avaliar se me sentirei segura e acompanhada por um profissional competente?

Lá fui eu. A ida foi cheia de expectativas e curiosidades e seguida de alívio ao perceber que o consultório era bonito e tinha uma aparência agradável, os móveis brancos e modernos. Isso ajudou a baixar a adrenalina e nos deixar tranquilas em relação ao médico. Ledo engano.

Não julgar pelas aparências é um importante aprendizado nesta vida.

A nossa tranquilidade foi logo embora. A porta se abriu e um homem de muita idade apareceu para chamar a paciente que estava na nossa frente. Olhamos apreensivas uma para a outra. Não era preconceito à terceira idade, pois já estou quase chegando nela. O que nos assustou foi o seu jeito curvado de andar. Como se a coluna já não mais suportasse o peso dos anos que ele teimava em camuflar naquele corpo.

- “Não deve ser este, tia. Acho muito velho para fazer partos, nem consegue andar com agilidade”, me confidenciou Rafaela, pois havia esperança de encontrar outro médico, o que atendia no consultório do lado oposto da sala.

Porém, nem deu tempo de divagar muito e depois de alguns minutos a paciente saiu e logo fomos chamadas pelo doutor de idade avançada. E ali estávamos – eu concentrada em meus pensamentos tentando justificar porque um profissional, que provavelmente foi dedicado e competente no passado, resistia e continuava a fazer a mesma coisa achando que estava igual como há 20 anos - e Rafaela inquieta, como toda jovem, querendo saber sobre os procedimentos nos primeiros meses de gestação. Mas nada fluía naquele homem que estava preso às suas limitações, apostando em acertar as linhas do prontuário e tentando demonstrar que nem precisava de óculos.

Que pena! Talvez, esta será a única lembrança que deixará às suas pacientes e poderá até cometer erros por não aceitar que está na hora de sair de cena desta história, ou melhor, atividade. Talvez, ensinar ou exercer outra que não exija tanto os seus sentidos e reflexos. O cérebro com certeza está ativo e o conhecimento deve ser brilhante em relação a medicina.

Olhei atentamente às coisas sobre a escrivaninha e vi fotos da família – convencional num consultório médico – e também outra foto recebendo uma homenagem e a placa ao lado destacando os 30 anos de serviços à saúde. Com certeza ele foi um excelente profissional e ainda o é, mas estava tão frágil naquele atendimento que não transmitiu a segurança que Rafaela tanto precisava para seguir as etapas de sua gravidez.

Envelhecer não significa parar com tudo, mas respeitar os limites impostos pelo tempo e traçar novos projetos de vida adaptados à situação. É preciso deixar o ego de lado. Ele atrapalha a paz do envelhecimento.

A lendária escritora francesa, Simone de Beauvoir , escreveu a história de um homem que queria ser imortal. No livro ela cria este homem que não morre nunca e descreve com brilhantismo a sensação de tédio e desesperança de ver os amigos e entes queridos saindo e entrando em sua vida.

Até hoje quando me lembro da história - já se passaram anos, pois era uma jovem quando li e agora estou no esplendor da maturidade - sinto angústia só em pensar na imortalidade e ficar na mesmice do meu ser. Que bom que as coisas na vida terrena têm começo, meio e fim. A natureza é o melhor exemplo deste movimento contínuo.

A cada ciclo precisamos sempre avaliar nosso corpo, nossa mente e psiquismo. Aceitar os resultados, mesmo que sejam frágeis, que não nos deixem continuar naquilo que sempre fizemos, e seguir em frente aprendendo a se adaptar aos novos momentos. É um exercício diário de reflexão. É a busca pela ‘grande sabedoria’- pelo amor a si mesmo.