Inocência

UMA CRIANÇA sem muitos amigos. Sem nenhum amigo na verdade. Pelo menos visíveis. Está sozinho, naquele terreno baldio, por que ninguém liga pra ele mesmo. Só que ele não pensa assim. Da parte dele, está ali para se divertir. Aproveitar o tempo antes que alguém o arraste de volta para o... para... o lar? Não. Para o lugar onde ele dorme, come e é repreendido constantemente por estar vivo e saudável. Isso (aproveitar o tempo) ele faz bem - por enquanto.

Agora está se divertindo pra valer. Afinal, ele sabe que aquilo não é um simples terreno baldio que dentro em breve será transformado numa indústria barulhenta qualquer - Para o progresso e geração de empregos, é claro. Não. Ele SABE o que aquilo realmente é: Um pedaço de terra magnífico. Por onde pode ter passado qualquer magnífico ser que já andou neste, igualmente

magnífico, mundo. E ele está ali, sozinho. De alguma forma ele sabe de tudo o que pode ter acontecido ou acontecer naquele imenso pedaço de mundo infinito (e magnífico). Tinha uma porção de coisas interessantes em sua volta: Uma carcaça, de um Fusca, velha como a lua, conjuntos de arbustos e ervas daninhas espinhosas, montes de areia, montes de lixo, ferro retorcido e enferrujado, madeira podre, vidro velho, pedaços de muro pichados, e coisas assim. Uma das pichações, branca num fundo escuro, era o nome "mateus" escrito, grosseiramente com "m" minúsculo, num muro que era o que sobrou da casa n.° 183. O número (que, á propósito, também era grafitado) ainda estava lá, com um buraco circular pequeno, talvez um tiro, que separava o 18 do 3. De forma que ficava, mais ou menos, assim: "mateus 18.3". Todas essas coisas lhe cotavam, cada uma, uma interessante história. E ele nem precisa ouvi-las inteiras para saber o quão interessantes elas eram.

Algo mais interessante está acontecendo ali, agora. As pessoas que passam e as, poucas, que o vêm não se dão conta da importância da ocasião. Pois todas sabem o quão importantes são as suas ocasiões neste exato momento - as mesmas de todos os dias, nada empolgantes, mas todas muito importantes. Ele não se importa. As pessoas não estão nem aí pra ele, e ele gosta disso (tendo consciência ou não) e as trata igualmente com aquela regra de conduta elevada e obrigatória.

Ele, naquele instante, é um explorador que aportou numa ilha longínqua. Seu nome é Fóquer e Fóquer é um aventureiro horando. Veio do reino distante de Tel Evi Zaum, cujo o Rei o incumbiu de uma importante missão - depois de entregar-lhe um mapa velho e apagado que fora descoberto numa câmara secreta dos recantos antigos e pouco visitados do castelo. E aquilo era tudo que ele esperava nem lembrava mais desde quando. Fazia tempo que não tinha uma aventura, e os dias no reino de Tel Evi Zaum estavam sendo difíceis de aturar - com todos aqueles bobos-da-corte sem graça, e todos aqueles comerciantes gananciosos que lhe ofereciam relíquias raras, que ele, com sua experiência de viajante, sabia serem tão genuínas quanto o sorriso nas feias caras deles. Era uma direção jamais navegada, a que tomaria, e muitas lendas atemorizantes a envolviam - e como isso era empolgante!. Por isso o Rei sabia que apenas ele seria capaz de aceitar aquela missão. Não haveria recompensa, uma vez que a aventura em si já seria uma recompensa, mais que satisfatória, para Fóquer, o grande aventureiro. E lá estava ele. Já tinha vencido um dragão marinho, decapitado uma anaconda-de-fogo num rio (?), voado nas asas de um pterodátilo, e agora estava ali, juntamente com seu amigo, inseparável Lóquer, no, talvez, último passo de sua jornada. Uma multidão de feras selvagens os perseguiram até ali, mas isso só tornava tudo ainda mais emocionante. Uma das feras, um jaguar de dentes de sabre, soltou um urro feroz (um caminhão repositor de cervejas que passava, sem dar a mínima para ele, nem pra sua importante ocasião - aprecie com moderação). O mapa era marcado com um círculo em volta da grande árvore. Foi para ela que ele se dirigiu desde que deixou o reino distante de Tel Evi Zaum e lançou-se ao mar. Agora, no topo daquela colina, a grande árvore (um pé de coração-de-negro) ergue-se majestosamente com seus galhos cheios de folhas (verde-escuro, verde-claro e castanho) balançando na brisa de verão - como se os saudassem. As folhas secas que caem com o balanço do vento são como os confetes da vitória.

- Aqui estamos nós, meu fiel amigo Lóquer! Eu disse que seria moleza. - Diz Fóquer, o explorador, erguendo a voz no meio do vento que sopra forte no topo da colina, dando a volta no grande tronco da árvore e encontrando o que procurava, uma fenda escura no tronco da árvore - assim como dizia o mapa:

"Na escuridão que se esquece

Tesouros para sua alma almejar

Nas entranhas daquela que cresce

Dando a volta irás encontrar"

Seus olhos brilham. Toda a busca recompensada. Realmente existia um tesouro ali naquela fenda, ou seu tato o enganava muito bem. Retirou um pequeno baú, adornado de ouro brilhante, a fechadura tinha o formato de uma flor-de-lis (assim como a chave dourada que ele trazia pendurada no pescoço), e dentro: as jóias raras que o Rei de Tel Evi Zaum tanto aumejava - as jóias que ELE almejava já tinham sido encontradas e desfrutadas (O nascer e o pôr-do-sol em alto mar, o reflexo dos raios solares da manhã refletidos nas ondas, o balanço das águas, erguer as velas contra furiosos ventos de tempestade, adentrar terras selvagens nunca antes pisadas - sentir o vento na cara!). Retirou uma jóia e a ergueu ao sol. Os raios refletiram numa opala verde e amarela. Mil noites não tirariam o brilho daquele sorriso.

Ele realmente retirou algo da fenda. Foi uma sacola. E realmente ficou surpreso ao faze-lo. Não esperava encontrar nada lá (não "de verdade", não visível) pois, ainda ontem, não tinha nada além daquela bola de festa esquisita (um preservativo), no meio de bitucas de cigarro e cacos de vidro. Mas agora tinha uma sacola que encaixava-se perfeitamente na sua aventura de hoje! O mundo era mesmo magnífico! Ah, o mundo era mesmo maravilhoso! Acredite, em alguma TV na vizinhança até começou uma trilha sonora (uma propaganda no intervalo da Sessão da Tarde) que começava assim: "I see trees of green... red roses too..."

A sacola estava cheia de saquinhos. Recheados de cocaína.

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"Eu acredito que só a inocência pode salvar o mundo"

- Tuomas Holopainem

Davyson F Santos
Enviado por Davyson F Santos em 23/10/2010
Reeditado em 24/10/2010
Código do texto: T2574186
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