Mais um dia

O dia me levanta. Dores nas costas denunciam que passei muito tempo na cama. Uma leve ressaca trinca o centro. As pesadas ficaram com o diletantismo. Memórias vão chegando e se agrupando, demoram a estabelecer uma ordem. Ontem... ontem... ontem... Como cheguei em casa? Bem, não é mais casa, apenas um quarto. Já foi casa por muito tempo, mas escapei, ou perdi, não sei mais. Meus olhos recém descolados cerram com a claridade. Minha cabeça faz um tour por pessoas, lugares e épocas. Estão no distante de mim. Aliás eu não sou mais aquele. Aquele morreu. Ficou eu, um fragmento, um restinho resignado, um não ser ligado a vida por seu sem jeito de deixá-la.

Pensei em morrer por muito pouco tempo essa manhã. Logo vi o caderno. Risquei Dr. Randoufo. Foi fácil. Um tiro na testa na saída do motel. Motel de estrada, a polícia demorou a chegar. Caminhei pelo mato até a estrada de Nova Lima e peguei uma taxi pra cidade. Ninguém desconfiou da minha mochila escolar onde relaxava minha 12 ainda com o cano quente. Esse foi um desafeto de mais de quinze anos, mas que nunca esqueci. Um fiscal que apreendeu minhas mercadorias quando tentei levantar um dinheiro como toreiro em época de vacas mirradas. Ele havia se aprumado bastante, chegou a ser candidato a prefeito, mas o cargo de Deputado Estadual foi suficiente para lhe dar status e dinheiro de Doutor. Mas acabou pra ele.

Essas lembranças animaram meu dia, virei a página buscando o próximo da lista. Seu Américo, de Sabará. Olhei dinamicamente o relatório. No final estava o motivo da escolha da data: "Casamento da filha mais nova". Lembrei que ele era velho, evito matar velho e mulher, criança nem pensar. Mas logo me lembrei daquele ex-policial me agredindo com tapas na cabeça e dizendo que ía me matar, jurando que eu era traficante. Lembro do nome bordado na manga da farda dele até hoje, SGTO A. Matanza. Tive medo. Acredito que só sobrevivi por conta do parceiro dele, que teve mais calma até perceberem que haviam abordado a pessoa errada só por causa da semelhança da moto.

Hoje estou feliz, por isso peguei uma faca, Sabará é uma cidade tranquila.

Fernando Tamietti
Enviado por Fernando Tamietti em 20/10/2010
Reeditado em 07/03/2013
Código do texto: T2568471
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