O Giramundo sem Rumo
Desencontros em Cidade Grande: O Giramundo sem Rumo
Acorda e vê a cidade em seus mais belos desencantos, como a sinfonia torta do mendigo que abraça a praça em busca de um trocado ou de um centímetro de descanço. Caminha com passos de ressaca até a janela, veste apenas uma camisa branca suja e calça jeans. Aquela não era sua casa, era apenas uma peça com mobílias e um triste cheiro no ar. Na janela aberta um cigarro o esperava, pensou nos dias sem sentido em que ia levando, de cima para baixo, de baixo para cima, num romance com caveiras e na espera de mudança. Eram tempos de dias tortos, movimentos estranhos e desconhecidos durante as noites, frias ou quentes. Todo aquele tédio esmagador vinha sufocando sua garganta, que estava prestes a dar um grito, mas no entanto, estava muito ocupada em tragar a fumaça do cigarro, puxando com vigor cada resquício de nicotina que deixava pelo ar. E aquela era uma manhã cinzenta, o céu azul se tornara um manto esfumaçado com pássaros que desafiam este quadro, e atrás dos edíficios se escondia uma montanha esverdeada, com casinhas na sua volta. Não era longe dali, apenas alguns quilometros, mas se ofuscava em meio a selva de pedra. Sentia a mudança apontando para o topo da montanha, que era na verdade um morro. O morro verde escuro, da grama crescida entre as arvores e uns casebres amontoados, que seguiam por um caminho desenhado nos pés do morro. Ergueu seus olhos para o céu e a manhã era silenciosa, a cidade era habitada apenas por mendigos ou pássaros migratórios, com seu ar de abandono, sobrevoando as cabeças e atirando um longo adeus a cidade, enquanto na janela ele terminava o cigarro e corria para encontrar um par de tênis em baixo da cama e fugir daquela peça mobiliada. Sentia fome e não havia comida desde a terça-feira passada, com os tênis apertando seus pés, desceu as escadas com pressa e esvaziou os bolsos num bar que servia pastel e suco por preço de barbada. Depois voltou em casa para pegar um velho casaco de couro e seguiu sua caminhada até o pé do morro.
Batalhou no amadurecer do dia até conseguir uma carona, se espremeu entre os trens e os carros que passavam voando, os vagabundos que se escondiam na espreita atrás do seu ouro. Mas não havia ouro, apenas um par de tênis quase estourando. A viagem não seria longa, sentiu que aguentaria. Conseguiu uma carona em um ônibus que passaria perto do morro, e lá, faltando pouco, saltou do ônibus deixando para trás algumas almas quentes e outras tantas geladas. O silêncio naquela área era diferente, não era fruto de um tédio urbano, era a consequencia de uma tranquilidade boa, do descanço, do intervalo das preocupações. E lá ele foi entrando, naquele silêncio abençoado, observando como a grama ficava mais espessa enquanto adentrava no morro, e a maneira como a cidade ficava pra trás, ameaçadora às suas costas. O dia amadureceu, e a noite veio caindo. Frutos lhe eram ofertados das arvores, e uma fogueira o aqueceu durante a noite. Em meio ao fogo, olhava as labaredas bruxuleando como velas enfurecidas. Apenas o barulho dos galhos sendo tocados pelo fogo, e os animais nativos da floresta. Olhou com os olhos cansados para o longe, para a cidade. Avistou no escuro uma janela aberta, a sua. No para-peito o semblante noturno de uma mulher, e detalhes do seu rosto iluminados pela chama de um cigarro. Acendeu um também, e suas fumaças se entrelaçaram viajando por cima de toda a cidade, alcançando a altura das nuvens. Como num abraço iluminado, se encontraram as fumaças dos cigarros vagabundos. E no quarto escurecido, a bela fumava olhando para a floresta, olhando o caminho da fumaça, olhando a fogueira e sua sombra. Algum semblante masculino conhecido atrás dela, e o contorno da floresta noturna abraçando a cidade. Do outro lado ele via a cidade contornar a floresta, vê a bela se ajeitar, apagar o cigarro... saltar...