Valentina, a Gata
Ontem à noite briguei com meu namorado. Hoje foi a vez do meu chefe. Cheguei em casa furiosa e me atirei na poltrona. Estou estressada. Quero sumir.
Ainda era dia, horário de verão. Olhei pela janela e enxerguei uma borboleta azul, voando sobre as flores do meu jardim. Inveja... Se eu fosse uma borboleta, libélula ou qualquer coisa que possuísse asas, meus planos de desaparecer já teriam se concretizado há horas.
Em compensação, minha gata, a Valentina, parecia não estar aí para nada e nem para ninguém. Muito menos para mim. Ela estava deitada no chão, tomando um ar, o pelo preto brilhando de tão sedoso. Valentina era uma gata sexy, de olhar amarelo e profundo. De todas felinas que tive, a Val sempre foi a mais misteriosa e sedutora. Naquele momento Valentina descansava, certamente se preparando para mais uma noite de conquistas.
Mas eu queria voar.
Comecei, no meu estresse, a sentir meus olhos pesarem. Antes de eu ferrar no sono, flagrei Valentina me encarando.
- Val, não me acorde… Eu preciso flutuar…
Não sei por quanto tempo dormi. Só lembro que sonhei que era uma borboleta gigante e, quando finalmente despertei, o luar entrava pela janela, cujas cortinas haviam sido esquecidas abertas por mim.
Abri os olhos bem devagar e me espreguicei. Imediatamente senti que algo estava estranho. Eu jazia no chão. Alguém ocupava o meu lugar favorito na poltrona. Para meu terror, era eu mesma. Fiquei em pé nas minhas quatro patas e quando gritei de susto, minha voz saiu na forma de um miado pavoroso.
Corri - e nunca fui tão ágil em minha vida - até o espelho da penteadeira. O que me fitava no reflexo era uma gata preta, de olhos assustados. Eu, que não era mais eu agora, dormia enrodilhada na poltrona. Ao invés de me transformar em uma borboleta, eu havia virado uma gata gostosa. Uau, pensei. Vou cair na gandaia.
Saí saltando pelos móveis, coisa que sempre proibi a Valentina verdadeira fazer. Em segundos eu estava na janela. O escuro da noite era algo fascinante, algo a ser experimentado por outro ângulo. Lá vou eu, disse para mim mesma, encantada. Preparei um salto e, em segundos, eu estava no muro mais próximo.
Como explicar a sensação de liberdade? Acho que nunca me senti tão livre na vida. Saltei muros, atravessei ruas, esgueirei-me pelos cantos escuros. Encontrei outros colegas da espécie, mas não travei contato com nenhum. Gatos, me deixem em paz. Eu quero curtir.
Depois de muito vagabundear - pelo menos era disso que eu, enquanto humana, acusava a gata Valentina quando ela sumia - resolvi sentar em um muro, não muito distante da minha casa. Olhei para as estrelas, para a lua cheia e miei de satisfação. Não, decidi. Eu não vou voltar. Valentina que enfrente meu namorado ciumento e meu chefe insano. Eu quero a noite, a liberdade, a falta de compromissos. Adeus, vida humana.
Levei um susto enorme quando escutei um miado forte próximo a mim. Virei minha cabeça, discretamente para o lado e me deparei com o Antenor, o gato da vizinha. Antenor, o gato. E que gato! Alemão, olhos verdes, forte e peludo. Sempre achei que a Val tinha uma quedinha por ele, mas agora, eu sendo uma gata, senti-me totalmente indefesa. O belo Antenor veio caminhando na minha direção, o corpanzil ondulante, um olhar de conquistador. Parecia dizer:
- Vou ser o pai dos seus gatinhos, pantera.
Opa! Pai dos meus gatinhos? E a minha liberdade onde fica? Não, eu não quero saber de namorados gatões e nem de gatinhos mimosos. Eu quero fazer festa, namorar as estrelas, correr pelos cantos, esnobar os seres humanos com a minha classe recém adquirida. Não, Antenor! Eu não serei sua!
Dei um pulo para o chão mais próximo, na ânsia de fugir do amor obsessivo do gato Antenor. Comecei a correr pelas calçadas úmidas do orvalho da noite. E os passos macios do Antenor eu podia escutar vindo em perseguição.
Entrei pela janela e encontrei minha forma humana dormindo ainda na poltrona. Meu miado saiu nervoso e alto, eu precisava da ajuda da Valentina. Com o chamado, ela acordou, espreguiçando-se como a gata que era. A primeira coisa que ela viu fui eu. Depois o Antenor, empoleirado na janela, observando a cena surreal. Em um lance muito rápido, Valentina quis ir ao encontro do seu flerte, sem se dar conta, até o momento, de que ela não possuía mais suas quatro patas.
O resultado foi desastroso.
Valentina desabou no chão quando seu salto acrobático terminou em pleno ar, deixando-a estatelada no chão. Antenor se assustou com o barulho e desapareceu noite afora e eu fiquei ali, em pânico, sem saber o que fazer. Afinal de contas eu era uma gata! Gatas não sabem usar celular para pedir socorro.
E se a Val morresse? Meu Deus, eu seria uma gata para sempre! Enquanto eu observava aquele corpo estendido no chão, tentei pesar os prós e os contras. Bem, ser um felino é a mesma coisa que ser livre. Satisfações para dar a quem? Ora, nem para mim mesma. Mas… e quanto à comida? Eu seria uma gata de rua, sem dono, já que a imbecil da Valentina parecia estar quase do lado de lá. Eu, revirar lixo para sobreviver? E onde fica minha elegância? Rato eu não como de jeito nenhum.
O desespero chegou quase junto com meu cansaço, após tantas ponderações. Valentina continuava inerte. Estiquei-me ao lado dela e caí em sono profundo.
Acordamos quase ao mesmo tempo, com o sol nascendo. Na minha cabeça, um galo. Olhei para Valentina, a gata, e ela me brindou com um miado de “bom dia”. E minhas mãos... Lá estavam meus dez dedos, com minhas unhas pintadas em vermelho. Meu corpo doía pelo enorme tombo da madrugada, culpa do gato Antenor. O telefone tocou. Mancando, sob o olhar de desdém da Val, arrastei-me até o aparelho. Quando minha voz saiu, até estranhei que não estava miando:
- Alô?
- Sabrina! - e meu namorado estava histérico do outro lado - Liguei para você a noite toda ontem! Onde você estava?
Resolvi contar a verdade.
- Descobri que eu sou uma gata e fui para a noite agitar. Com exceção da queda que eu sofri, o resto vai bem.
Silêncio. Ele devia estar achando que enlouqueci.
- Mas eu sempre disse que você era uma gata.
- Na próxima vez então diga que eu sou uma borboleta. Aí eu poderei voar.