O Pote de doce

A cidadezinha no interior do Maranhão é do tamanho de um ovo. De tão pequena, os segredos não são guardados e sempre que algum fato “relevante” ocorre não há quem não fique sabendo. Os casos graves não são comuns. Pessoas de vidas simples, de hábitos simples e que levam a vida entre o trabalho e os afazeres domésticos. Os mais velhos e suas histórias; e os mais novos e suas vontades. Nada de novo, apenas de diferente.

Dos episódios mais marcantes da cidade, tirando um ou outro furto, dois chamam atenção. Dona Genoveva, uma carola conservadora e muito beata, que sempre arrotou de pura e casta, foi flagrada numa cena de sexo explícito dentro de uma das salas de aula da velha escola municipal. O garanhão era seu Fidélis. Homem casado, pai de quatro filhos e cidadão acima de qualquer suspeita. A mulher dele

quando soube lhe deu uma coça e foi embora da cidade. O pobre diabo ainda vive por lá, mas hoje não se mete em confusão. Já dona Genoveva buscou o perdão da igreja e vive de arrumar a casa paroquial. Menos pura, mas mais casta do que nunca. Ou não.

O outro segredo revelado devido ao tamanho do lugar é o da jovem Artemísia. Menina direita e de família tradicional. A moça não tinha namorados, não era dada a modismos ou pinturas. Vivia de casa para a escola e quando muito ia à igreja para ajudar o pastor. Nunca se envolvera em escândalos e tinha na bíblia protestante o seu maior regozijo. Contam as más línguas, e numa cidade do tamanho de um ovo isso é mais comum do que se pensa, que um dia a jovem saíra para uma reunião na casa de uma prima, de sua mesma idade, e que na casa onde morava funcionava a pousada dos pais, e que por lá conhecera um forasteiro.

O homem era alto, bonito e parecia ter posses. Ao ver a moça brejeira e seu jeito tímido, não se conteve e a seduziu. A pobre Artemísia chegou em casa no dia seguinte, depois de os pais se debruçarem em lágrimas e peregrinações, toda rasgada, cheirando a álcool e com a calcinha pendurada no dedo médio. Ria à toa e se dizia mulher de verdade. A família foi embora da cidade e nunca mais se ouvira falar de Artemísia. De resto, a cidade não tem segredos.

Silvano é um dos moradores de São Mateus, o mais conhecido de todos. Moço sabido e que aprendeu os segredos da eletrônica para ganhar a vida. Casado com Angélica, mulher bonita e ar silencioso. Dona de casa exemplar e que tinha na família os maiores tesouros. Enquanto Silvano saía para sua oficina a ganhar o pão, Angélica cuidava da casa e dos filhos, Tomé, de dois anos, e Ana Luíza, de quatorze.

Silvano era de uma calma que deixava o povo, às vezes, com raiva. Pense em um cidadão tranquilo, de voz mansa e que jamais alguém poderia imaginar numa cena de fúria. Dizem os mais íntimos que ele seria capaz de dar a outra face quantas vezes fosse necessário.

_ Homem bom, esse Silvano. - Diziam uns.

A casa do técnico em eletrônica é modesta. Uma varanda ampla com uma porta de correr, dessas que dá acesso direto ao meio da sala. Dois quartos que são dos meninos, um casal, e um terceiro com banheiro que é a suíte do casal. A janela do quarto tem vista para a rua e a dos filhos vai para o quintal. A casa tem uma cozinha ampla, uma sala de jantar, despensa e área de serviço. Como toda casa do interior, a casa de Silvano também tem uma área no fundos, um fogão de lenha e um lindo pomar.

Angélica é dessas mulheres que encantam só de se ver passar. Moça de traços finos, de pele morena e de ar sensual. Cabelos negros, lábios carnudos, seios firmes e ancas largas. Discreta no falar e no vestir, vive a cuidar do marido e dos filhos. O pequeno Tomé, em homenagem ao santo, já que o marido tinha fama de só crer no que visse, e a mais velha, Ana Luísa. Nome em homenagens às mães de Silvano e Angélica. De resto, uma vidinha pacata e sem sobressaltos.

Ao chegar em casa, Silvano vinha notando já a algum tempo, que sempre tinha uma vasilha suja de doces sobre o fogão de barro. Era sempre de um sabor diferente: caju, manga, mamão, buriti, enfim. Guloseimas que por aquelas bandas a gente come que fica triste. Mas ele nunca provava dos quitutes da esposa.

_ Angélica! Cadê o doce dessa semana?

_ Era de côco, mas não prestou e joguei fora.

Sempre ouvira isso da esposa amantíssima. Mas nunca quisera duvidar de sua reputação.

Um dia o pastor Silas, líder da igreja evangélica onde o casal congregava, chamou Silvano à casa para que este lhe consertasse um vídeo cassete. O rapaz prontamente atendeu ao chamado do guru religioso e como o serviço tinha sido longo, deixou a casa do pastor e seguiu para a sua. O caminho era comprido e ele tinha que andar um trecho dentro de uma espécie de mata. Nada muito extenso ou de árvores densas, mas um pedaço repleto de verde. A estrada dava acesso ao interior da cidade, chamado vila Caxuxa, e o outro lado da rua ia em direção a sua casa, no bairro dos Alegres.

O sol batia 10h40 e Silvano avistou de longe a menina Ana Luiza deslizando de bicicleta em direção a Caxuxa levando, preso no guidom, um pote de cor azul. Intrigado, o pai deu com o olhar até perder a menina de vista e rumou para casa. Chegou em silêncio, banhou-se, almoçou, beijou o filho, tirou um cochilo, levantou para o turno vespertino e pediu um doce.

_ Era de abóbora. Mas deixei queimar de novo.

Era outra segunda-feira e ele resolveu ver se via a filha na mesma batida da semana anterior. Viu de novo, e de longe, o pote parecia vermelho. Chegou em casa em silêncio, banhou-se, almoçou, beijou o filho, tirou um cochilo, levantou para o turno vespertino, foi à cozinha, bebeu água e vistoriou o armário. O pote azul estava lá.

Aquilo lhe encasquetou e resolveu desabafar com alguém. Mesmo sabendo que a esposa nunca demonstrara nenhum tipo de aversão aos seus carinhos e ao sexo de três vezes por semana, e mesmo ela também não querendo nenhuma novidade no amor, Silvano quis ouvir do pastor suas palavras de conselho e resolveu conversar com o sábio senhor da igreja.

_ Desde quando você tem essa cisma?

_ Já tem umas três semanas.

_ E é sempre na segunda-feira?

_ Sempre.

_ Mas é de noite? Você sabe, na hora do..., bem, do...

_ Da foda?!

_ Sim, do amor.

_ É como sempre. Nenhuma novidade.

_ Ela não pede algo estranho, algo diferente?

_ Diferente, como?

_ Um chamego mais quente, uma posição mais, mais, mais.... entendeu?!

_ Entendi. Pede, não.

_ Ela está lhe dando um tempo. Ela está fingindo. Mulher finge. Sabia disso?

_ Finge, como?

_ Finge que tá gostando e fica em silêncio, quieta.

_ Mas...

_ Ela tem outro cabra e tá gostando com ele.

_ Mas...

_ Fique atento e veja se não tenho razão.

Ouviu todas as recomendações do pastor e resolveu vigiar mais uns dias. As semanas se passavam e a rotina do pote de doce, só mudando a cor, era a mesma. Mas no trivial a mulher não mudava os hábitos e os vizinhos não davam pela falta dela em outros horários. Nada de estranho. Nadinha.

Numa segunda-feira qualquer, ele viu a filha na bicicleta indo para a Caxuxa. Chegou em casa em silêncio, banhou-se, almoçou, beijou o filho, tirou um cochilo, levantou para o turno vespertino, foi à cozinha, bebeu água e vistoriou o armário. O pote azul estava lá, o vermelho também, o verde também e faltava um outro cuja cor ele não lembrava. Esperou o filho adormecer e foi ao quarto de ferramentas. Sacou da arma e deu três tiros na esposa amante.

Os filhos não viram nada e hoje vivem com a avó materna. Silvano está preso por crime contra a vida e por motivo fútil e sem chance de defesa da vítima. Dezessete anos de reclusão e não recebe visitas. A cidade não o perdoa. Não provou o adultério e Ana Luiza emudeceu ao saber da morte da mãe. Desde a data nunca mais abrira a boca. E dos potes de doces nunca se soube quem os comera.

VALBER DINIZ
Enviado por VALBER DINIZ em 15/10/2010
Reeditado em 11/05/2011
Código do texto: T2558715
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