O Restaurante

Desde que havia assumido a administração do restaurante da família passava o dia inteiro no caixa, cuidando de tudo com olhos atentos. Era ativo, jovem e o negócio que sempre foi querido pelos freqüentadores tendia a melhorar.

Por ser no centro, em uma das avenidas mais importantes e movimentadas da cidade, todos os dias no horário de almoço o lugar lotava, mas por ser grande e com boa comida, ninguém reclamava.

Se nos negócios tudo eram flores na vida pessoal era arco-íris: tinha pais maravilhosos, irmãos prestativos e uma noiva linda, inteligente e que o daria belos filhos.

Quer o que mais?

Reparava nas pessoas que iam assiduamente. Trabalhadores, executivos dos prédios, bancos, escritórios da região e estudantes de colégios, faculdades e cursinhos. Mas uma figura lhe chamou a atenção.

Toda terça-feira, 13h40m se sentava na mesa do canto direito do salão, que tinha espaço para quatro pessoas. Mas sentava sozinha. Uma jovem de, no máximo 20 anos, cabelos pretos lisos e uma franja que tapava quase totalmente os olhos.

Seu prato raramente pesava mais que 600 gramas, não pegava carne, mas muitos legumes, verduras e frutas. Quando recebia a comanda dava um tímido sorriso, que parecia muito falso. Sentava-se, comia em silêncio sem desviar os olhos do prato. Quando seu lugar estava ocupado, ia para a mesma mesa no centro do salão. Se ambas estavam ocupadas dava um suspiro e procurava qualquer outra, mas quando isso ocorria, não terminava de comer.

Nunca pedia nada para beber, pagava sempre em dinheiro e antes das 14 horas já havia terminado. Ele sempre sorria à ela no caixa, mas ela apenas inclinava o canto da boca, por educação.

Antes não dava muita atenção à moça, mas aquele seu ritual costumeiro o intrigava! Lembrava-se da primeira vez que a tinha visto: Ela havia feito a mesma coisa como se tivesse planejado e ensaiado bem antes.

Passou a reparar em tudo nela. Era impecavelmente pontual, usava roupas discretas e modernas, unhas sempre coloridas, um tênis velho com alguma jeans e camisetas com estampas que pareciam pintadas à mão. Sem reparar, começou a se interessar por ela. Não amorosamente; mas queria saber como era a vida daquela personagem, o que a fazia agir assim!

Sua noiva um dia fez um comentário, enquanto o abraçava por trás do balcão:

-Aquela garota parece a Mortícia!- e sorriu. Antigamente ele teria rido, mas por algum motivo se zangou.

-Pode ter certeza que a Mortícia está pagando uma parte do nosso casamento.- A noiva se calou, assustada e nunca mais fez piada dos clientes. Mas achou esquisita a defesa do noivo e passou a reparar na garota.

Depois de mais um mês achou que ela era simplesmente sociopata, feia (era muito antipático ter olhos cobertos por uma franja espessa e negra), não tinha casa na praia (era tão pálida!) e era estudante (só isso explicava as constantes olheiras). E pouco vaidosa, pois vivia de jeans e all star.

Os olhos dela nunca haviam cruzado com os dele. Ele tentava, mas ela sempre baixava os olhos e sorria levemente com os comentários que ele fazia sobre o tempo, as eleições, o futebol. Como queria arrancar algo dela! Alguma reação, um sorriso verdadeiro, uma resposta!

Achava cada vez mais sua futura esposa previsível, fútil e sem graça. Era uma beleza artificial, com maquiagem e roupas caras.

Sua estranha não! Havia um charme no seu aparente abandono social e na aparência e o mistério do seu silêncio começaram a encantá-lo cada dia mais.

Antes só pensava nela dentro do restaurante às terças; depois, passou a pensar nela fora do horário do almoço; depois, durante os outros dias da semana e mais tarde, no fim-de-semana, em casa, na rua.

Estava apaixonado por algo que nem conhecia.

Sonhava com o dia que ela viria em outros horários, outros dias da semana. A noiva reparou na gradual mudança e passou a ficar mais tempo no restaurante, o que o irritava ainda mais. Ela sabia que havia algo errado; mas nunca relacionaria com a Mortícia.

Um dia conseguiu com que sua noiva ficasse bem longe, fazendo compras com as amigas. Numa terça-feira. Estava animado, pensava no que poderia fazer para que sua Mortícia desse um sinal de vida.

Mas ela não apareceu. A decepção e o susto que se abateram sobre ele eram avassaladoras. Não sabia o que fazer; e se tivesse acontecido alguma coisa? E agora, e agora? Oh!

Que alívio quando ela apareceu na semana seguinte! Sua noiva havia viajado, portanto, mais uma vez ele tinha a chance de falar com ela. E aproveitou. Assim que ela se dirigiu ao caixa, ele deu um sorriso enorme.

-Boa tarde!- ela murmurou algo baixinho, quase sem mexer os lábios. Parecia que dizia 'Boa'. Meio sem jeito ele continuou:

-Reparei que você sempre como aqui. Não quer fazer um convênio com a gente?

-Como assim?- ela ergueu a cabeça, interessada. Ele se assustou: ela tinha um rosto bem desenhado e não tinha uma voz ou modos submissos: parecia ativa, falava em um tom claro, firme e com uma voz melodiosa. Ele pigarreou e prosseguiu:

-Você pode combinar os dias que vai almoçar aqui e pagar no final do mês.

-Qual seria a diferença de eu pagar todo dia, então?

-Nós... Poderíamos te dar um desconto!

-Seria ótimo.- Ela sorriu. Não seu sorriso tímido, mas um grande, que exibia perfeitos dentes brancos e lábios de um rosa pálido, meio rachados pelo frio. Ela passou a mão pela franja, levantando e jogando para o alto da cabeça. Isso a deixou com o cabelo bagunçado, mas revelava um rosto doce e bem diferente do que ele pensava. Ficava charmoso o contraste de sua beleza com seu jeito desencanado.

-Está fechado, então?

-Pode ser, sim. Obrigada.- ela ia saindo quando ele a segurou pelo braço. Foi estranho. Ele se sentiu como quando era adolescente e deu o primeiro beijo: um fogo passou por sua pele na região que a tocou. Ela usava uma camiseta que deixava os braços finos e com pulseiras coloridas à mostra e ao sentir sua pele macia sobre a dela, parecia que ia derreter.

-Preciso dos seus... Dados.

-Você já sabe quem eu sou, não?

-Sim, mas... Só algo para... Garantir o...

-Eu venho aqui há quase quatro meses. Confie em mim, certo?

-Não é por mim, mas pelo restaurante, para eu ter um controle...

-Certo, certo, mas agora estou atrasada- Olhou para o relógio: Duas horas.- O que precisa?

-Seus documentos e sua assinatura. Posso preparar um pequeno contrato agora mesmo se puder esp...

-Não posso esperar. Eu te trago amanhã.

-Mas você não vem às quartas.- Ele tremia um pouco e se segurava para não gaguejar.

-Eu posso vir aqui todos os dias. Eu trago tudo amanhã. Fique calmo, o almoço de hoje está pago, o máximo que pode acontecer é que eu desista.- Ele se assustou com essa possibilidade. Estava tão perto de saber mais dela!

-Pode me falar ao menos seu nome para que eu...

Mas ela havia saído apressada.

Ele havia ganho o dia.

Na quarta-feira estava mais arrumado nervoso. Olhava para o relógio toda hora, como se a esperasse para um encontro. Uma... Duas... Três da tarde ele não vinha. Mas ela não vinha almoçar, então ele esperou mais. Cinco... Seis... Sete horas tinha que fechar o restaurante. E ela não veio.

Ah! A noite, quando se deitou, parecia que tinha se desmanchado em cacos de vidro! Ela havia mentido! Havia dado um bolo! Parecia que ele tinha 15 anos de novo e tinha brigado com sua noiva, que nessa época era namorada. Mas agora ela não interessava nem um pouco. Só sua Mortícia, sem nome.

Quinta-feira ele estava com olheiras, a barba por fazer. Uma noite mau dormida. Quem reparou achou que fosse a falta da noiva, que só voltaria bem depois, com o vestido pronto.

Ele não se lembrava mais que era noivo, vivia em função de sua estrela morena. E para sua surpresa, ela apareceu.

Estava chovendo um pouco e ela chegou com os cabelos e o casaco preto molhado. Foi direto ao caixa, com uma mochila. Ela nunca ia de mochila!

-Me desculpe- ela começou- Ontem eu tive que estudar para uma prova e não consegui vir. Nosso acordo ainda vale?- Ela sorriu.

-Claro- ele respondeu, estupefato. Não havia feito documento nenhum, só reparava nos olhos claros dela por trás de óculos de grau (que ela nunca havia usado) e em seus cabelos molhados, que ficavam um pouco cacheados.- Só preciso do seu RG.

Ela tirou de um pequeno bolso o documento. Com curiosidade ele leu o nome. Era lindo... Como ela. Ela tinha 17 anos, bem menos do que ele pensava e estava no último ano do colégio. Ele a levou ao seu pequeno escritório, no fundo do restaurante, onde grudava nas paredes as despesas e lucros do lugar. Enquanto ele digitava qualquer coisa no computador, ela lia com curiosidade as cartas, notas promissórias, contratos, folhas de pagamento e murais. Ela estava de costas para ele. Ele parou de digitar e a admirou. Era quase uma criança, comparada com ele! Mas ele ainda não tinha chegado aos 30 anos então, quem sabe...

A interrupção do barulho do teclado a fez olhar para trás. Ambos enrubesceram ao cruzarem os olhos. Ele disse que havia terminado, imprimiu e deu à ela para assinar.

Tinha uma letra quase ilegível e irregular, que ele adorou.

-Só isso?- ela perguntou.

-É.

-Eu já vou então e... Obrigada pela gentileza. Quero dizer, o cuidado por reparar em mim, no meio de tanta gente.

-Imagine.- ela estendeu a mão e ele agarrou. Com força. Ela soltou e foi embora. Ele se perguntou por que havia reparado nela no meio de tanta gente.

Passaram-se dois meses assim: Ela ia às terças-feiras, alguns dias inclusive com alguma amiga. O cumprimentava e fazia algum comentário sobre o tempo, as eleições ou futebol, mesmo não precisando pagar na hora. A noiva dele estranhava a súbita mudança ( por não saber o que ocorrera na sua ausência). E a verdade é que ele estava apaixonado pela Mortícia. E toda vez que eles se encontravam para acertar o mês, conversavam durante 10, 20 minutos, mágicos para ele. E quanto mais a conhecia, mais gostava.

Ia terminar o noivado. Era loucura, já que Mortícia nunca havia dado sinais de algo com ele; Mas se não fosse com ela, não seria com mais ninguém.

Passado mais um mês, Mortícia foi almoçar e, para sua surpresa, ele não estava lá. Na semana seguinte também não e na outra também não.

Isso a deixou aborrecida e ela não sabia com quem pagar. E sentiu algo dentro de si... Saudades daquele caixa bobo. Era bom conversar com ele. Quando houve a virada do mês ele não apareceu ela ficou preocupada e perguntou ao novo caixa (que não era nada simpático):

-Por favor, o que houve com o antigo rapaz que ficava aqui?

-Ele é o dono do lugar, né? Mas terminou o noivado, acho que está se recuperando.

Ela ficou boquiaberta e foi embora. Um mês sem almoçar no seu lugar preferido.

Quando ele voltou de seu tempo consigo mesmo, entrou em desespero. Há um mês ela não ia lá! Até que a viu passando na porta, sem olhar para dentro. Não teve dúvidas: correu até ela. Ela havia chegado ao final do quarteirão e estava esperando para atravessar a rua quando sentiu uma mão em seu braço.

-Você?- Ela sorriu. Ele estava ofegante.

-O... Que... Acon... Teceu? Você... Não... Foi... Mais... Lá...

-Eu sei que tem um mês que eu ainda não paguei, mas é que você estava fora e eu, aliás, sinto muito pelo que aconteceu.- Ela falou correndo, atropelando a própria língua.

-Não é o dinheiro é a... Como você sabe?

-Me contaram.

-Ah. Mas está tudo bem.

-Fico feliz por isso. Sabe, eu vou ter férias daqui alguns dias... Então vou ficar sem aparecer mas eu volto para acertar o último mês.

Férias?

-Claro. Eu vou... Sentir sua falta.

Ela arqueou as sobrancelhas. Falta? Do que ele estava falando?

-Eu tenho que ir.- e como sempre, ela saiu, sem cerimônia. Mas antes, se desvencilhou delicadamente das mãos dele.

Ela realmente voltou e pagou. Quando entregou o dinheiro nas mãos dele ele segurou a mão dela e simplesmente a encarou. Depois, desistiu.

Ficaria um mês sem vê-la; seria horrível, mas teria que se acostumar. Passaria rápido. E numa sexta-feira a noite ela apareceu. O restaurante estava quase fechando e ela entrou com um enorme grupo de jovens, fazendo barulho, gargalhando, até um pouco bêbados. Se sentaram numa mesa encostada na parede. Ele mesmo foi atender, pois ninguém havia pego comida.

Ela estava com um curto vestido vermelho e uma maquiagem forte ao redor dos olhos, que os deixava mais claros.

-O que vão querer?

A maioria pediu algo alcoólico, menos a Mortícia, que estava gritando e fazendo piada tanto quanto os outros. Parecia tão jovem e moleca quanto deveria. Incrível como os adolescentes mudam quando estão em grupo.

O tempo foi passando e quando eles estavam indo embora, o ex-noivo puxou Mortícia:

-Que bom que hoje você veio com bastante gente.

-É.

Ela parecia séria e o olhava com gravidade. Todos a esperavam do lado de fora, mas não davam atenção aos dois. Os funcionários do restaurante se preocupavam somente em arrumar o estabelecimento.

-O que houve?

-Eu tenho vindo cada vez mais aqui.

-Isso é bom.

-Eu vou mudar de restaurante.- Silêncio.

-Por quê? Falta tão pouco para acabar o ano e...

-Eu enjoei da comida daqui. Há muito tempo.

Ele ficou arrasado. Era claramente uma comprovação de que as esperanças infundadas que ele nutria realmente eram sem sentido.

-Então...

-Então eu vinha aqui só para ver você.

Ambos ficaram em silêncio. Se olhavam até que as luzes do salão foram apagadas.

-Hora de fechar- ele sussurrou.

-Tudo bem, tem outros lugares por perto.

-Quer comer alguma coisa?- Ele perguntou.

-Pode ser.

Ele pegou a mão dela e saíram pelo centro, de mãos dadas, rindo, na direção oposta do barulhento grupo, que nem notou a falta da Mortícia, por conta do efeito do álcool sobre todos.

O ex-noivo e Mortícia sumiram debaixo do céu roxo.

A lua cheia parecia um prato de restaurante.

Walrus
Enviado por Walrus em 03/10/2010
Reeditado em 03/10/2010
Código do texto: T2535268
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