Eu não sou vadia não, senhor, seu delegado. Dei azar. Já estou nessa cidade há mais de ano e ninguém até agora tem nada para falar de mim não senhor. Eu durmo ali mesmo, desde que cheguei. Comer, eu como caranguejo, quando arranjo um biscate para fazer, compro farinha e macarrão, que é o que dá para fazer nas panelas que ganhei. Ganhei pedindo, não roubei não senhor. Ganhei também umas roupas e uns garfos e faca que o rapaz do restaurante lá de perto da ponte deu. Às vezes ele também me dá comida que sobra de lá. O senhor pode ir lá perguntar para eles, o senhor mesmo. Me banho de noite no rio que é para a molecada não apoquentar. Não faço nem um barulhinho. As minhas necessidades, também eu enterro. Varro. Onde eu durmo, eu varro.

Tem uma senhora que mora ali no mangue, dona Maria José, que me ajuda também. Às vezes, quando estou com dor de cabeça ela vai no postinho comigo e eles me dão remédio. E eu ajudo ela. Eu tenho meus documentos tudo direitinho. O senhor pode ver aí, ó. Eu tenho o que eu já tinha quando vim para cá. O senhor vê que não sou vadia.
Eu não tenho família, não senhor. Fui criada numa casa de abrigo e quando deixei de ser de menor tive que sair. Aí fui trabalhar na casa de dona Amália mais seu Otávio e o filho deles, o Tavinho, que não demorou muito quis se aproveitar de mim. Ele queria me obrigar a fazer coisas que eu tenho vergonha de falar. Foi quando vim embora. Para cá não. Fiquei por aí andando no mundo, na noite. Quem me dava de comer e tomava conta para ninguém fazer maldade era o pessoal da rua mesmo. Um protege o outro. Na rua é assim.

Eu ficava pouco tempo em cada lugar, porque roubar eu não roubo não senhor. Isso eu aprendi com uma freira, Irmã Cidinha, lá no abrigo. E também tinha o pastor Eli, que ensinava que não podia roubar nem matar porque era contra as leis de Deus. Ó o senhor pode ver mais uma vez que não sou vadia. Às vezes os meninos lá da rua queria forçar para dar um beijo, dormir junto, mas aí eu não queria não. Uma vez chegou lá uma bonitona mais uns rapazes e queria levar a gente para trabalhar na rua. Eu e mais duas outras, a Berê e a Zizu. A Berê botou olho no dinheiro da dona e foi. Ficamos eu e a Zizu porque nós não acreditamos nela não. Teve uns tempos que fiquei com o Cuca. Não sei o nome dele não senhor. Saber o nome para que se todo mundo conhecia ele de Cuca mesmo?

Às vezes me dá assim um deslumbramento e eu penso que lembro da minha mãe. Aí eu fico forçando lembrar, mas não consigo não. Eu nunca vi mesmo nem minha mãe e nem meu pai. Nem irmão. Eu vivo mais o meu cachorro Linguicinha que não deixa ninguém chegar perto. O senhor pergunta para o polícia, que quase foi mordido por ele. Só não foi porque eu mandei ele parar.

Dona Maria José é que me deu ele, novinho. Eu não tenho dinheiro, nem um tostão. Muito difícil arranjar emprego. Até que se o senhor arranjasse uma casa para eu trabalhar e dormir, eu ia. Mas tem que levar o Linguicinha. Aí ninguém vai querer. Por isso que eu moro lá na ponte, que é bem dizer o finalzinho do terreno de dona Maria José. O senhor conhece ela? Então pode perguntar para ela. Se o senhor pudesse ajudar ela também... Ó eu me metendo na vida dos outros. Mas fico com pena dela. Ela adotou um menino negrinho, negrinho que nem um carvão. Ele já é até de maior e ela não conseguiu que a justiça desse ganho de adoção pra ela, até agora. Morre de medo de morrer e o filho dela, que é meio maluquinho, ficar no desamparo. É muito ruim ficar no desamparo. Graças a Deus eu tenho saúde. Mas ele, coitado, é meio virado.

Então, o senhor já viu que não sou vadia. O senhor vai me soltar? Vai me mandar embora? Preciso ir embora, o Linguicinha já deve estar morto de fome. Estou preocupada com ele mais do que comigo. Já estou aqui presa tem três dias e eu não fiz nada não senhor. Eu juro que não fiz nada, não senhor.

Eu estava lá na porta do mercado esperando o menino da entrega trazer os repolhos que ele disse que tinham jogado fora, mas que dava para aproveitar. Foi quando chegou a senhora que foi roubada. Ela chegou, encostou a bicicleta, cadeou ela e saiu. Eu fui saber que ela tinha ido ao banco depois. Eu vi quando ela voltou e a moça ajudou ela a descadear a bicicleta. A bolsa dela escorregou para o braço aí a outra, ó... A que estava ajudando arrancou da bolsa e saiu correndo. A senhora começou a gritar e criou aquele reboliço.

Aconteceu, então que eu peguei meus repolhos na horinha e corri para atravessar a rua para aproveitar o sinal. Quando vi os polícias pegaram no meu braço, pegaram minha sacola com os repolhos, que jogaram fora, e me trouxeram para cá. Mas eu não estava correndo porque roubei. Talvez pelo meu jeito e minhas roupas o senhor vai pensar que sou ladrona, mas não sou não. O senhor vê, estou até com as marcas aqui no meu braço e com a blusa rasgada. Os polícias disseram que eu tenho que ir embora da cidade e eu não tenho para onde ir não senhor. Queria que o senhor me soltasse. O senhor já viu que não tem bolsa nenhuma comigo, porque estou preocupada com o Linguicinha. Ele estava comigo e com certeza está lá fora esperando. E vou dizer para o senhor: se ele morrer eu morro também, porque o Linguicinha é a única coisa, o único amor que eu tive na vida. Cachorro é assim, né? Gosta sem ver de quem...
Eliana Schueler
Enviado por Eliana Schueler em 01/10/2010
Reeditado em 12/07/2011
Código do texto: T2531338
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